A propósito de eleições
(Crónica desta quinta na plataforma Sapo24)
Sempre que há eleições, lembro-me de um episódio caricato que vivi há duas ou três vidas - e que me ajuda a relativizar a vida, as pessoas, a política. Ao ver a reportagem da SIC, com Marcelo Rebelo de Sousa, na passada segunda-feira, primeiro dia do candidato eleito, essa historieta voltou a sentar-se à minha frente. E é irresistível contá-la. Não tem qualquer relevância, mas revela o carácter de uma pessoa. Ou a falta dele. Passou-se algures a meio dos anos 90. Eu era - ainda sou - amigo pessoal de uma então candidata a uma autarquia local relevante no país. Tão relevante que a Sic-Notícias a tinha escolhido para ser uma das pessoas que protagonizaria um frente-a-frente com o candidato que se lhe opunha. Era um tempo em que ainda se respeitavam as decisões editoriais, e o canal escolheu meia-duzia de autarquias cujo peso mediático merecia atenção redobrada. Nada habituada a debates deste tipo, menos ainda na TV, pediu ajuda aos seus amigos, desafiando-os para algumas noitadas de perguntas e repostas que podiam surgir no programa. Do meu lado, pediu-me que levasse mais um jornalista. Do seu lado, levou dois camaradas seus. Um deles era José Sócrates, então jovem deputado do PS - e foi assim que conheci a figura. Não apenas me pareceu simpático como criou empatia comigo - e conseguiu. De tal forma que, na semana seguinte, na segunda noitada de perguntas e respostas à candidata, jantámos os dois, umas horas antes, um belo peixe ao sal num restaurante de Algés. A amizade não passou para lá dessas duas ou três noites. Mas Sócrates fez questão de me tratar por “tu”, de que o tratasse por tu, e não evitou a conversa informal entre duas pessoas com uma amiga comum, idades próximas, ideias não muito divergentes. A verdade é que a nossa “candidata” ganhou, uns dias depois (ou antes, já não sei precisar…) António Guterres era nomeado primeiro-ministro depois de vencer quase em simultâneo eleições gerais - e, no meio de todo este alvoroço socialista, a minha amiga, entretanto alcandorada a presidente de câmara, comemorava, como habitualmente, o seu aniversário, com uma festa em casa. O (futuro) governo de Guterres marcou presença em força. Ainda não havia tomado posse, mas era como se já fosse: segurança reforçada, policia à porta de casa, aparato qb. Senti-me mais numa festa política do que, como em anos anteriores, num aniversário de uma amiga. Passado o crivo da segurança, lá entrei na festa. A animação reinava, até porque parte daquelas pessoas já sabia que ia pertencer ao novo Governo, o que dava algum suplemento de vitalidade ao evento. Todas as pessoas me trataram da mesma forma como antes me haviam tratado: havia quem me cumprimentasse com um “você” próximo e simpático, como Guterres e Ferro Rodrigues, havia quem mantivesse a frieza e distância anteriores, como Armando Vara, havia quem não me conhecesse e nem sequer olhasse. Havia de tudo, até pessoas que só me conheciam por ser “o filho do Rolo Duarte e da Maria João”, como o Duarte Brás.
Só notei uma diferença. Ao ver-me, José Sócrates -. o mesmo Zé que duas semanas antes me tratava por tu, e falava de peixe ao sal, futebol e política durante um jantar descontraído - olhou-me lá de cima dele próprio, numa repentina e nova pose, entre a superioridade e a distância, e perguntou:
- Você, também por aqui?
Nesse momento, percebi quem ele era e a que espécie de gente pertencia. E não me enganei. Nem que fosse apenas por este traço de carácter, Marcelo Rebelo de Sousa merece a eleição que ganhou. Pode ter um sem número de defeitos - mas acredito que a sua atitude para com aqueles com quem se cruza será a mesma de sempre. Antes e depois do lugar para que foi eleito. Faz toda a diferença.