Um curador e um pesadelo
(Crónica originalmente publicada na Lux Woman. Por engano, postei há dias aquela que sai este mês, e deixei esquecida a do mês passado. Cá fica agora. A próxima... Bom, sobre a próxima falaremos em devido tempo!)
Quando, aqui há uns meses, tive uma primeira reunião com a minha colega Joana Stichini Vilela, para desenharmos o que viria a ser um novo programa de televisão, ela sublinhou várias vezes a ideia de podermos assumir o papel de “curadores” de um mundo que tem oferta excessiva para a nossa capacidade de consumo, e essencialmente de escolha. Na altura, confesso, associava a palavra “curador” apenas às exposições de arte, às grandes manifestações culturais, em que surgia uma espécie de “alto comissário” responsável pela selecção de obras. A ideia de “curadoria” estava de tal forma numa esfera de superioridade que cheguei a pensar que seria absurda a utilização da palavra num programa que apenas queria seguir tendências sociais, novos caminhos dos media, saídas para os becos onde a cultura se foi enfiando desde que a internet veio “baralhar” a ordem estabelecida.
Neste ponto, vale a pena dizer que a Joana é uma daquelas raras jornalistas que faz a ponte entre gerações com mestria e inteligência: está atenta ao que é novo sem entrar em histeria, respeita o que existe sem aquela atitude muito em voga de “deixa andar” e “logo se vê”. A Joana é uma lição permanente para quem trabalha com ela (e no meu caso, além de partilharmos um corredor de mesas no primeiro ano do jornal “i”, mal nos conhecíamos), pela inteligência com que gere a sensatez e o entusiasmo que a caracterizam e com os quais vive feliz. Adiante.
O programa nasceu e eu fui-me habituando à ideia de curadoria aplicada a coisas simples como revistas, ou livros, ou restaurantes. E aos poucos ganhou um estatuto que me fez dar razão, de vez, à Joana: a profissão que mais falta faz nos dias que correm é mesmo a de curador.
De tudo. Especado perante um expositor de enchidos num supermercado, não sei de todo por que morcela optar, ou farinheira, ou chouriço (sim, sei que vou morrer por causa do cozido à portuguesa…). Queria um curador ao meu lado, alguém que me dissesse se, apesar da fama do porco preto, para o cozido ou para umas favas não será preferível um chouriço mais corrente. O mesmo curador que depois me ajudaria a escolher a carne para cozer, as couves, e no limite a batata (só a variedade de batatas que existe daria um tratado…).
Do supermercado salto para uma livraria e a perdição é completa, entre os livros cujas capas me atraem, os autores que conheço, os livros que a critica recomendou. Da livraria passo para a TV e as séries. Que faço? É impossível acompanhar a voragem daquilo a que Edson Athayde, com muita graça, retratou nesta frase notável: “Um país sem Netflix é como um país sem McDonald’s. As séries americanas tornaram-se o fast food da alma”.
E vou por aí fora, numa oferta global sem precedentes em todas as áreas do consumo, e numa rede gigantesca de possibilidades de acesso: a net, as lojas, os centros comerciais, a venda por correspondência, por telefone, porta a porta.
Falo por mim: sinto-me cercado e de certa forma acossado por todo este excesso e pela pressão que se lhe associa. Há sempre alguém que nos diz “o quê?! Tu ainda não viste?!”, como se fosse crime passar ao lado de mais uma serie da Fox. “Ainda não foste àquele restaurante?!” - e a resposta “ando com pouco dinheiro para esses luxos” não serve nunca o interlocutor. “Tens de…” é sempre o começo da frase seguinte.
Há uma só realidade: quanto mais oferta, maior parece ser a nossa ignorância. Ou a estranha sensação de que nos passa ao lado o que não passa ao lado de mais ninguém. Sei que não é verdade, e sei que não estou sozinho.
Mas a noite passada sonhei que tinha despedido a senhora que me limpa a casa uma vez por semana e tinha contratado um curador. Completo. De tudo. Para me escolher os filmes, as séries, os livros, os discos, as revistas, os chouriços, os queijos, os vinhos, as exposições, os colunistas, os pneus do carro. E quem sabe, no futuro, a vida. Toda ela. Não foi um sonho, claro. Foi um pesadelo.