Lisboa, nem menina nem moça
(Crónica desta quinta, na plataforma/newsletter Sapo24)
Havia alguém - julgo que a Catarina Portas, agora na lista das presidenciáveis para a Câmara de Lisboa, e muito justamente… - que escrevia, há pouco tempo, que o futuro mais provável do turismo em Lisboa seria o triste cenário dos turistas virem à capital de Portugal verem… outros turistas. Era o fenômeno da gentrificação (gentrification, no original inglês) elevado ao cubo: o centro da cidade tornar-se-ía tão caro e inabitável que os lisboetas se transfeririam para os subúrbios (onde já vive a maioria…), deixando os bairros centrais nas mãos dos hotéis, hostels, turismos de habitação.
Na verdade, o lisboeta - falo por mim - já se sente um pouco excluído da sua cidade quando, por exemplo, se confronta, no trânsito, com o caos em que a baixa se tornou, com a ditadura do estacionamento pago, com os preços da restauração (que ameaça, na soberba de quem nunca ouviu a história da galinha dos ovos de ouro, que nem a descida do IVA a fará praticar preços mais razoáveis…).
Também se sente, no mínimo, atordoado, quando superfícies comerciais como o El Corte Inglês, decidem comunicar promoções e novidades, nos seus espaços, em português, inglês… e chinês! Por fim, com o preço do metro quadrado de venda e arrendamento na zona central da cidade. Viver em Lisboa tornou-se um luxo, em todas as frentes.
Restavam alguns segredos que só mesmo os lisboetas conheciam - algumas tascas, lojas de bairro, um café onde o pastel de bacalhau é perfeito, uma esplanada ainda tranquila… -, o património edificado e aparentemente intocável, fosse o Ateneu Comercial ou o Avenida Palace; e o mais clássico do comércio da Baixa (a mais recente condenada à morte foi, esta semana, a drogaria S. Pereira Leão, mais um hotel a caminho). Mas também por aí vai o buldozzer da modernidade arrasando tudo, sem que lhe ponham travão de qualquer espécie - e assim vivemos, em simultâneo, a explosão do turismo e a implosão da vida que lhe deu sentido. Só não vê quem não quer ver.
Posso admitir que seja difícil conciliar o negocio puro e duro com o interesse cultural e histórico - mas é fácil aceitar que esse mesmo negócio só tem interesse enquanto se sinta a autenticidade que o sustenta. De nada serve exibir a fotografia de um pastel de nata que não se pode provar - como de nada serve ter um edifício histórico (por exemplo, a sede do Diário de Notícias, em breve…) de que só resta a fachada, e que esconde um moderno hotel ou centro comercial.
O que estamos a assistir, com passividade quase criminosa, é à morte, primeiro lenta, agora acelerada, de uma cidade que se distinguia justamente por não ter caído na teia luminosa da fachada sem interior, da aparência sem consistência, e da existência sem coração.
Gostava sinceramente que a “Lisboa Menina e Moça” que Carlos do Carmo tão bem canta (e Ary dos Santos maravilhosamente escreveu) não fosse, amanhã, uma memória sem tom nem som da cidade onde nasci e vivo.
Estamos a tempo de parar para pensar, de legislar para controlar, e de decidir que raio de cidade queremos para os nossos filhos. Mas o tempo escasseia - e ainda há por aí muito para destruir, mutilar, escavacar. E vontade não falta a quem nunca ouviu a tal história da galinha cujos ovos eram de ouro… até ao dia em que deram cabo dela.