Um dia, há mais ou menos cinco anos, recebi um mail de uma leitora deste blog, Francisca Prieto, que pedia desculpa pela lata, mas avançava sem medo para o pedido: queria um dos meus livros, de preferência autografado. Não o queria para si, mas para uma iniciativa, que tinha o formato de um blog, onde reunia fundos para a Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21. Francisca dizia que não queria pedir dinheiro sem dar nada em troca, e lembrou-se de criar um blog que leiloava livros. Livros novos, em segunda mão, oferecidos. De vez em quando pedia a um autor um exemplar autografado para animar o espaço. Em vez de um, mandei-lhe 15 livros, dos muitos que a Oficina do Livro fez o favor de me dar antes que fossem guilhotinados e mortos para sempre. Por lá andaram, no Déjà Lu. Fiquei feliz por se ter lembrado de mim na hora certa. Há pouco mais de um ano, Francisca voltou a dar sinal de vida: agora convidava-me para apadrinhar, juntamente com mais uma dezena de pessoas, a livraria Déjà Lu. Ou seja, o projecto evoluiu para um espaço fisico, na Cidadela de Cascais, onde os livros oferecidos, novos e em segunda mão, seriam vendidos por voluntários - e toda a receita encaminhada para a Associação. Já não sob o formato de leilão, agora na versão clássica de livraria. Disse logo que sim. O espaço, ainda por cima, é lindo, decorado com gosto e simplicidade. Os milhares de livros que o habitam estão organizados com humor, ironia, e todas as paredes respiram palavras, e amor às palavras. Sugeri livros que gostava de ver por lá à venda, e ofereci dezenas de livros que dormiam tranquilamente cá em casa. Há uma semana, a Déjà Lu comemorou o seu primeiro aniversário. Está maior e mais bonita. Tem livros apadrinhados e outros que ninguém sabe de onde vieram. No blog, pode agora ler-se: “é uma livraria de livros já lidos. Poderíamos chamar-lhes livros em segunda mão, mas não é a mesma coisa. Afinal estes são livros que já fizeram companhia a alguém. São agora revendidos por uma causa solidária”. A Francisca não pára quieta e a coisa cresce. Passei lá para dar os Parabéns - mas acima de tudo, para sentir, uma vez mais, o coração quente. E ver a Francisca e a sua equipa viverem o entusiasmo dos sonhos tornados realidade. É mais fácil fazer bem do que fazer mal. E é tão bom transformar palavras em solidariedade.
(Crónica de hoje, um pouco atribulada, mas ainda a tempo, na plataforma Sapo24...) Ontem foi o dia de um homem só. Acompanhado, rodeado, acarinhado. Mas só. Ontem foi o dia de Marcelo Rebelo de Sousa, o novo Presidente da Republica, sozinho, sem partidos nem “apoios”, sem cadernos de encargos nem deves e haveres de fretes e favores, exibir a Portugal como pode ser diferente a política, como se pode ser institucional sem ser tradicional, como se pode chegar ao topo da estrutura do estado sem os trâmites habituais. Marcelo chegou sozinho, subverteu o protocolo, trocou o banquete pelo espectáculo de rua. Foi claro na mensagem: quer ser um Presidente para os portugueses, não apenas dos portugueses. E nesta pequena nuance, entre o “para” e o “dos”, há toda uma história - que de resto o seu discurso inaugural bem revela. Enquanto a maioria dos políticos - incluindo o Presidente que saiu… - fala dos portugueses como uma massa homogénea, espécie de “coisa” que não se distingue do resto da paisagem, Marcelo falou “de pessoas de carne e osso”. E acrescentou: “Que têm direito a serem livres, mas que têm igual direito a uma sociedade em que não haja, de modo dramaticamente persistente, dois milhões de pobres, mais de meio milhão em risco de pobreza, e, ainda, chocantes diferenças entre grupos, regiões e classes sociais”. Em todas as palavras do seu discurso há intenção, não há acaso nem improviso. Em todos os actos do dia de ontem houve avisos, sinais, declarações de intenções. Se o seu exemplo for visto por aqueles que persistem em fazer da política um território cercado de arame farpado, a política terá começado a mudar ontem. Talvez possa ser mais para as pessoas e menos para os números, mais para a mudança e menos para a estagnação. Não sou, porém, muito optimista. Não há duas pessoas iguais - e acima de tudo, não aparece com frequência no nosso universo público gente com a fibra, a garra e o talento popular - que não populista - de Marcelo. Provavelmente, este será um caso isolado - que, paradoxalmente, por isso mesmo, vai marcar a História. Que seja inspirador, não peço muito mais. E agora que a fasquia se elevou a um nível nunca antes visto, esperemos que o novo Presidente a mantenha nas alturas. Se não for um homem que quebra o protocolo, e se mostra diferente desde a primeira hora, a pôr de lado o cinzento que domina a política nacional há 40 anos, não há mais ninguém que o possa fazer. Nesse sentido, Marcelo ontem foi um homem só - mas teve muita gente do seu lado. Que continue a dormir pouco e nunca se cansar…
Estava a editar um programa de rádio onde se vai falar de mar, e tropecei nesta ideia de Fernando Pessoa: “O mar é a religião da Natureza”. Pensei: um dos privilégios da minha profissão é ensinar-me coisas todos os dias. O outro é deixar-me a pensar nelas. (… E nestes momentos desisto daqueles pensamentos recorrentes sobre mudar de vida, ir para o Alentejo, cozinhar para fora. Enfim.)
(Derradeira crónica publicada na revista Lux Woman. A deste mês...)
São 4.46 da manhã e estou a escrever. Não conseguia adormecer, já tinha a ideia desta crónica na cabeça, e perguntei a mim próprio, ainda na cama: se sou um freelancer, um profissional livre, por que raio não posso levantar-me e ir escrever? Posso. E vim. Mas sei bem que sou não apenas uma excepção, como um privilegiado. Ainda que os privilégios tenham um preço alto… Quando decidi ser livre e trabalhar por conta própria, percebi rapidamente que perdia uma série de benefícios: subsídios, férias pagas, baixas médicas, entre outras. Mas também ganhei liberdades, como esta de decidir aproveitar uma insónia para escrever uma crónica… Ao fim destes quase dez anos, confesso: não tenho a certeza de qual é a melhor das inseguranças. Mas acredito que a liberdade - mesmo a falsa liberdade de ter tempo mas não ter dinheiro… - vence o horário, a rotina e falsa ideia de que gerimos o nosso tempo. Se for sincero, desistam: raramente isso acontece. Hoje é uma excepção. O prédio está em silêncio. O bebé do segundo direito dorme tranquilo. Os vizinhos do lado não discutem a relação aos gritos, como de costume. Em frente, no Estádio do Inatel, não decidiram cortar relva de madrugada nem aparar as árvores. Oiço o silêncio - que é das coisas mais difíceis de ouvir numa cidade. Por escassos instantes, sou livre - porque logo começam os aviões a aterrarem perto. E o telefone lembra compromissos para breve. E os primeiros carros largam os seus lugares nocturnos. Há liberdade quando se trabalha a solo - mas o preço dessa liberdade é mais alto do que a beleza da palavra. Nunca mais tive férias quando quis. Nunca mais tive o tempo livre marcado num calendário. Nunca mais fui descontraído com a agenda, nem com as contas, nem com o dia de amanhã. Acima de tudo, nunca mais dormi da mesma maneira…
… Antes, dormia conforme a minha rotina diária. Era certa e sabida. Agora, durmo conforme os compromissos que a agenda me vai marcando. Hoje posso dar-me ao luxo de ter esta insónia - se fosse amanhã, não podia. Mesmo que a rara insónia não seja escolhida por mim. Antes, sabia que havia subsidio de férias e natal, agora sei que nunca há. Antes, sabia que podia adoecer, agora sei que não posso (poder, posso - mas não devo…). Quando escolhi ser jornalista, não pensei nestas variáveis. Hoje vejo que são comuns a quase todas as profissões, e que a ideia de segurança no trabalho é já tão antiga e falível como estacionar o carro na cidade sem pagar. Ao fim de 30 anos, continuo a fazer o que escolhi e gosto - escrever, comunicar -, mas diariamente penso em mudar, em arriscar, em experimentar. Até faço um programa na rádio sobre isso. Nesses instantes de dúvida, recordo uma lição de um amigo gestor. Disse-me ele: “Tudo o que já sabes tem um valor. A tua missão é pôr esse valor a render o dinheiro que vale”. E eu vou tentando… Raramente consigo.
Persisto nesta ideia romântica que, não sendo dele, o meu pai me ensinou: se fizer apenas o que me dá prazer, passarei a vida sem trabalhar. E ainda me vão pagar por isso. Tenho tentado. E às vezes tenho conseguido. Agora acho que vou conseguir dormir.
PS - Há coincidências incríveis: estava a rever a crónica, antes de a enviar, quando recebo um mail da directora Rita Machado. Tudo o que começa tem um fim, e eu sabia que chegaria o dia em que me tocaria a mim. Toca agora. É estranha a coincidência: é sobre insegurança e trabalho que escrevi esta minha crónica - sem saber que era a última… Despeço-me com esta certeza: a equipa da Lux Woman tratou-me, durante estes dez anos em que mensalmente aqui escrevi, com profissionalismo, mas também com doçura, atenção e cuidado. Provavelmente, continuarei a vir a estas páginas de vez em quando. Mas gostava que ficasse escrito que este foi um lugar onde fui muito feliz - e que tenho a certeza de que não deve ser simples, nesta fase da vida da imprensa, dirigir uma revista e manter a qualidade que a Lux Woman tem conseguido manter. Por isso, mais do que um adeus ou um até já, a última frase é para a fantástica Rita Machado: força, e boa sorte!
PS 2 - Entre os vários comentários que esta crónica convocou, destaco este mail, de uma leitora, que me tocou, mexeu comigo, e com a sua autorização aqui deixo: “Li a sua crónica da LuxWoman sentada na Segurança Social, à espera da minha "apresentação quinzenal" à qual chamo de reunião quinzenal (para me parecer melhor). Sou muito nova e estou desempregada, digamos que o que trabalhei descontando não foi muito e o que já trabalhei sem descontar, juntando a isso, já foi muito bom (e mesmo assim não me leva a lado nenhum). Li e reli a crónica e infelizmente trabalhar por conta própria é um pau de dois bicos. Ora temos uma determinada liberdade, ora não temos porque o Estado depende mais de si do que os seus filhos. É triste viver assim, é triste ser-se uma desempregada nova, que tem "a vida pela frente" mas que desanima sempre que vai à segurança social e olha à sua volta, sempre que envia cerca de 20 ou mais currículos em cada duas semanas, cuidadosamente escritos e com carta de Apresentação e não recebe uma única resposta, nem um "agradecemos, no entanto, irá ficar na nossa base de dados", é triste sermos "tantos por 1 vaga/oferta de trabalho". É tão triste o que nos rodeia. É ainda mais triste a dependência de todas as contribuições que fazemos ao longo da vida e que nunca na vida nos irão fazer a nós. É triste a sua, a minha, a nossa, a vossa situação. Melhores dias virão e jogue no euromilhões, aposte em mais coisas, num negócio, em ser mais feliz se assim o quiser. E sim, há dias radiosos, nos quais temos dinheiro, saúde, trabalho, felicidade e vontade de sair de cama (e ter insónias para fazer coisas que gostamos). No entanto, há dias em que não sabemos o que nos leva a levantar-nos dela. Há dias e dias”.
Entre o debate sobre a eutanásia e o “romance” Henrique Raposo, a semana foi marcada pelo mais irritante fenómeno dos média nacionais: o achismo. Toda a gente acha qualquer coisa. E escreve. E publica. Sempre foi assim - com vagas de achistas que hoje são moda, amanhã são chatos -, e pelos vistos sempre assim será. Não me excluo do grupo: passei anos a achar isto e aquilo, até perceber que o limite do meu achismo deve estar junto ao limite dos meus conhecimentos. Talvez por isso, o discurso de Henrique Raposo não me mereça comentários: a forma como escreve resulta certamente de estudo e conhecimentos. Ou então, de achismo e lata descomunal. Na minha qualidade de falso alentejano (costumo dizer que, sendo lisboeta, não tenho terra, e por isso me sinto alentejano…), acharia pelo menos tolo o que li do que ele escreveu. Ou então o rapaz apenas quer protagonismo. Mas não passo daqui. Já no caso da eutanásia, estou mais informado e atento, e consigo distinguir o debate sério, a fazer, das declarações infelizes e pouco ponderadas da Bastonária da Ordem dos Enfermeiros. Estamos num domínio onde se confunde eutanásia com cuidados paliativos com alivio de sofrimento nos momentos finais da vida. É toda uma outra conversa. Depois ainda houve o “Caso Lamas versus João Soares”, mais a desfaçatez da ex-ministra Maria Luís Albuquerque, e a rematar uns vagos 1800 milhões que talvez tenhamos de pagar por causa de uns swaps activos que um banco reclama. A semana foi assim. Que Raposo assim ou assado. Que a Bastonária dos Enfermeiros isto ou aquilo. Que o Happy Meal da McDonalds está certo ou errado. Que o cartaz do Bloco de Esquerda pode ou não pode. Que Maria Luís Albuquerque devia ou não devia. Chega sexta-feira e estou cansado de tanto achismo. Já nem consigo achar nada - a não ser a chave de casa para me fechar a ler um livro. No meio de tanto ruído, só me lembro de João César Monteiro, que o meu sócio João Gobern citou hoje quando gravávamos o nosso programa de rádio: “não vi e não gostei”. É isso.
Foi há mais de 30 anos, e pelos vistos há menos de 35. A minha namorada da época tinha um amigo, actor, mais velho, frequentador das noites, que sabia onde se devia ir, onde se comia bem, onde estava o começo do que viria a ser o esplendor dos anos 80 no Bairro Alto. Nós tínhamos menos de 20 anos. Uma noite ele levou-nos àquele que, dizia, era o melhor restaurante de Lisboa. Tinha aberto há pouco tempo. Chamava-se “Pap’Açorda”. Lembro-me de ficar maravilhado com a excelência do serviço, a qualidade dos pratos, e um ambiente que, ao longo da noite, foi evoluindo quase para uma pequena festa de amigos. Adorei. Já começava a trabalhar mas não ganhava o suficiente para ir jantar ao “Pap’Açorda” - pelo que passaram alguns anos até lá voltar, com excepção de uma vez, numa ceia organizada de propósito para receber a cantora brasileira Simone. Felizmente chegou a viragem da década de 80 para a de 90 e tudo mudou. Daí para a frente, ao longo dos anos 90, o dinheiro deixou de ser problema, o trabalho abundava (e dava trabalho recusá-lo…), e a vida parecia ser a coisa mais fácil do mundo. Nesse tempo, o “Pap’Açorda” acolhia-me pelo menos uma vez por semana, ao almoço ou ao jantar, em reuniões de trabalho ou jantares de amigos, com a minha mãe na véspera de casar, com o meu filho miúdo a fazer o teste aos melhores croquetes de Lisboa, casado de fresco, com a equipa da “K” a pensar a revista, eu sei lá: foi seguramente o restaurante de que junto maior numero de recordações, onde vivi momentos únicos, e que mesmo nos anos em que era corriqueiro jantar lá, cada refeição tinha a sua história, a sua gargalhada, o seu momento. Não havia selfies, o que ajuda a fixar a memória e obriga e puxar pela cabeça. Gosto disso. Mais tarde abriu a “Bica do Sapato” e eu, como este vasto grupo de clientes habituais, comecei a dividir-me pelos dois espaços - mas nunca troquei um pelo outro. Acumulei. Enquanto pude, claro. A mudança de ciclo económico destes anos obrigou a maioria de nós a mudar de hábitos - e reduzi drasticamente as minhas idas às casas do Fernando, do José, da Manuela, do Manuel. Felizmente, o momento coincidiu com a minha crescente aproximação à cozinha e ao gosto por cozinhar. Correu bem. Porém, passados estes 30 anos e aquela primeira noite fantástica comandada pelo Vicente Batalha, há uma coisa que nunca mudou: sempre que me perguntam qual é o melhor restaurante de Lisboa, eu respondo “Pap’Açorda”. E tendo pena de o ver mudar de poiso, espero poder continuar a dar a mesma resposta, agora no Mercado da Ribeira, para onde se transfere esta semana. Lá irei, lá irei.
Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.
Uma boa frase
Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira
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