Calem-se!
Há coisas que não se explicam. Um dia, em algum momento menos feliz, alguém deve ter feito uma qualquer bruxaria que me condenaria a uma pena perpétua: viver rodeado de ruído. Quem quer que me tenha condenado, está de parabéns. Conseguiu. Há 15 anos que sou perseguido pelo ruído, o que me tem feito mudar de casa com metódica regularidade, mas sem qualquer sucesso.
Já vivi em apartamentos velhos que começaram a sofrer obras de renovação no dia em que me instalei; já vivi em apartamentos aparentemente conservados, mas que ainda assim levaram obras poucos tempo depois de me mudar; nos últimos anos, e bem enganado pela aparência exterior do prédio e pelo estado do meu iminente terceiro andar - todo ele novinho em folha, num edifício dos anos 50… -, achei que tinha chegado ao paraíso, com o Parque do Inatel em frente e passarinhos a cantar pela manhã.
Redondo engano: o meu apartamento foi o primeiro de (pelo menos) seis que viriam - e estão… - a sofrer obras de remodelação total nos últimos quatro anos. Significa, por cada apartamento, três meses de ruídos que vão do martelo pneumático às oito da manhã ao despejo de entulho pela tarde…
… Como se não bastasse, a tranquila varanda onde tomo o pequeno-almoço e tento ler à noite, vira-se para um campo de futebol de cinco onde as equipas que o alugam vibram umas com as outras aos gritos, palavrões e insultos. Quanto mais velhos os utilizadores, pior a banda sonora, mais grunha a linguagem. Se porventura se acalma a futebolice, logo vem o tratador da relva e a sua máquina, ou a feira alternativa e o bater dos tambores esotéricos, das taças tibetanas, ou o canto desafinado de meditações impossíveis. E evito falar da deficiente insonorização do prédio, que torna todos os vizinhos mais íntimos do que é suposto, mesmo quando o tema é “vai-te embora, isto acabou!”.
Viver na cidade é fantástico - mas viver no meio do ruído é mortal. Eu só queria que se quebrasse o feitiço e voltasse a paz, o silêncio, a possibilidade de acordar sem ser a golpes de martelo, ou de ver um filme sem ter como banda sonora uma cópia reles de um Benfica-Sporting. Não peço mais do que a oportunidade de escrever, em casa, durante o dia…
Às vezes pergunto-me se será por causa desta ruidosa forma de viver em silêncio que, tantos anos depois de me divorciar, continuo a viver sozinho…
Não é. Mas há dias em que até parece.