Pode um catálogo de uma loja ser mais do que uma montra de produtos? Pode um catálogo de uma loja, por si só, constituir leitura que extravasa a loja que pretende promover, e os artigos que vende? Pode um catálogo de uma loja merecer mais do que a vida efémera de todos os catálogos, e andar pela sala, ser relido e revisto, como uma revista de qualidade? Pode. Se for o catalogo da cadeia IKEA - mais especificamente, o catálogo 2016/17, que acaba de inundar as caixas de correio de meio mundo. A frase que marca a capa é apenas a ponta de um iceberg que se descobre lá dentro: “Criado para pessoas, não para consumidores”. No tempo em que não há textos nem fotografias, há conteúdos; no tempo em que as pessoas são números ou estatísticas; no tempo em que se chama requalificação ao despedimento e deslocalização ao fecho de empresas; bom, no tempo em que tudo se maquilha com palavras e números, a marca sueca baixa à terra e olha a vida como ela deve ser olhada: “maravilhosos momentos imperfeitos”. Tendo a ideia de imperfeição como inspiração e as pessoas como centro do seu negócio, a IKEA cria um catálogo onde a exibição dos produtos é pontuada por fabulosas histórias - sobre alimentação, materiais de construção, design, artesanato. Histórias com pessoas dentro, histórias reais de gente real, histórias que lemos como se fossem artigos de uma boa revista. Na verdade, são. E é por isso que aqui estou a elogiar um catálogo - e a sugerir que o vejam com olhos de ver. É o melhor exemplo do que pode e deve ser o marketing de uma empresa do século XXI. Melhor seria difícil.
Nota: sendo, como quase todos, um cliente irregular da IKEA, já tive excelentes experiências, mas também já tive péssimas experiências. Não sou dos que se rendem à funcionalidade da marca, nem aos preços, que às vezes são bem menos baixos do que parecem. Dito isto, não deixo de escrever o que penso. Pode parecer publicidade, mas não é. Acreditem que jamais recebi sequer um lápis da empresa. Nem aceitaria. Só esta distância e independência me permitem o à-vontade de saudar esta edição.
Ver um ex-ministro da administração interna, Rui Pereira, comentar na CMTV presumíveis homicídios e potenciais suspeitos como crimes efectivos, e criminosos transitados em julgado na praça pública, é algo que por um lado me assusta, mas por outro me ilumina. Para já, baixa-me à terra mesmo numa pacata noite de sexta-feira: ok, vivemos num mundo demasiado imperfeito para que possamos acreditar na justiça, na igualdade, e na meritocracia - que levaria alguns a lugares de poder, e outros a lugares nas mesas de sueca dos jardins das suas cidades. Pensar que Rui Pereira, este mesmo homem que vejo ali a palpitar, superficial e ligeiro, sobre um crime cujos contornos se conhecem vagamente, e que fala no suspeito como já óbvio autor de um triplo assassinato macabro - dizia eu, pensar que este homem mandou nas polícias portuguesas, que por sua vez nos metem dentro, nos acusam, nos investigam, diz muito sobre a roda livre em que vive a justiça em Portugal. E o poder. E não é de somenos que, ao lado dele, na TV, estivessem um ex-autarca (Moita Flores) e um ex-inspector da PJ e ex-sindicalista (Carlos Anjos)… Desta vez a culpa não é da CMTV. Quem se senta naquelas cadeiras sabe ao que vai - e é triste admitir que esta gente faz parte da elite que manda/mandou/mandará em Portugal. Assusta. A única vantagem é que também ilumina.
“Sobe o calor”, a canção que Sérgio Godinho compôs para o filme “Refrigerantes e Canções de Amor”, de Luís Galvão Teles, é daqueles momentos especiais de um artista, daqueles em que desafia tudo. Desafia a idade, a capacidade de surpreender, o mito de que as canções geniais ficam guardadas para os discos. E também confirma muita coisa. Que um génio não tem idade, que Sérgio Godinho não se deixou ficar num qualquer tempo passado, e que às vezes basta uma canção para podermos dizer: felizes de nós, que o temos aí para as curvas. É ouvir e conferir. Rendido, adormeci ontem com ela, e com ela acordo hoje…
(Li este provérbio num livro de aforismos, dos muitos que fui juntando ao longo dos anos. Mas não fui buscar este "grafismo" a lado algum: piroso ou não, fiz eu mesmo, sobre uma foto minha, tirada num pôr-do-sol alentejano, há já uns anos. Quando ainda havia "Pagemaker", se me faço entender.)
Se não fosse triste e lamentável, podia ser de rir, ou uma notícia do “Inimigo Público”: uma instituição do Estado, o Tribunal de Contas, num relatório sobre a execução orçamental da Administração Central, critica o Estado a que pertence por exigir aos contribuintes o que o próprio Estado não cumpre… Não percebeu? Nem eu. Vamos devagar: uma das missões do Tribunal de Contas é fiscalizar a forma como o Estado, através dos Governos e da Autoridade Tributária, cumpre e faz cumprir a lei e os Orçamentos. Nesse âmbito, divulga relatórios em que analisa o que foi feito, o que está mal, o que está certo. No Relatório divulgado há dois dias, e relativo a 2015, o Tribunal de Contas vem dizer algo que todos nós, cidadãos, já sentimos na pele de alguma maneira: que os atrasos do fisco, por exemplo, na devolução de impostos ou na correcção de erros, não é minimamente penalizada; ao contrário, se o cidadão se atrasa ou se engana, lá vem a multa, os juros, e às vezes a conta bancária congelada. O Tribunal de Contas dá um exemplo: os prazos legais para fechar a contabilidade do Estado são invariavelmente “queimados” - mas exigidos aos contribuintes e sujeitos a multa caso os cidadãos escorreguem nas datas. Diz o relatório (e estou a citar o Diário de Notícias): "Pelas razões que levaram à implementação do E-fatura, em poucos meses, é mais do que oportuno que o Estado, o Ministério das Finanças e a AT também apliquem, como administradores de receitas públicas, os princípios e procedimentos que tornaram obrigatórios aos contribuintes por os reputarem essenciais para a eficácia do controlo dessas receitas”. E é aqui que começa a gargalhada. É que o Tribunal vem debitando esta lengalenga todos os anos, mas nada acontece: não há multas ao Estado, não há responsáveis punidos, não há juros a reverter para os contribuintes. O contrário também se mantém inalterado: não é por o Estado ser incompetente, nem por o Tribunal de Contas o sublinhar, que o cidadão é premiado e, pelo menos, amnistiado ou absolvido dos seus delitos menores… Estamos portanto no domínio da comédia, em rigor da farsa: as instituições fiscalizam, fazem relatórios, criticam. Nada muda, nada acontece. Impune, o Estado persiste em ser mau pagador, incumpridor, e laxista. Tudo o que não perdoa ao contribuinte que o sustenta e lhe dá sentido. Parece um gozo, uma espécie de brincar ao faz-de-conta entre instituições do mesmo Estado, jogando apenas entre elas - só que os peões do jogo são adultos, as suas vidas, o dinheiro de todos. No fim, como sempre, quem se lixa é o mexilhão. Lá está: se não fosse triste, dava para rir.
Não há hoje revista, jornal ou mesmo blog que não dedique espaço ao chamado “lifestyle”: restaurantes, novos bares, lounges, “espaços”, para não falar dos enervantes “sunsets” (que são basicamente finais de dia na praia regados a álcool e musica que asfixia a melhor banda sonora natural, que é o mar)…
Enfim, deixemos isso.
O problema é quando decidimos seguir as sugestões dos jornais e vamos experimentar os tais “spots” que marcam o prazer da vida. Raramente a realidade corresponde à idílica descrição que lemos. Este verão, já levo vários baldes de água gelada em locais que publicações insuspeitas, como a Time Out, me recomendaram.
Primeiro exemplo: o restaurante “O Fadista”, em Melides. Já tinha tentado lá jantar há uns anos, mas não fui bem sucedido - quem me recebeu tratou-me com duas pedras na mão, e jurei não voltar. Mas como a revista o elegeu nas suas páginas dedicadas àquela zona, e me disseram que a gerência tinha mudado, voltei. Desta vez fui à hora do almoço marcar mesa para jantar. À noite, apresentei-me pontualmente, mas fui logo avisado: vai esperar pelo menos meia-hora. Foram 45 minutos. Dos pratos do dia, restava o frango do churrasco. E tal como em Lisboa faço o teste aos restaurantes pedindo um bitoque (quem não saiba fazer um bitoque, não sabe fazer nada…), no Alentejo peço a clássica Carne de Porco à Alentejana. “O Fadista” chumbou: carne rija, em vez de mistura de sabores, soma de sabores, alguns mesmo sem sabor (como as conchas…).
Segundo exemplo: dois anos depois de reclamar com o pior serviço de um restaurante caro de Lisboa, e de me ser dada razão, volto ao “Café Lisboa”, de José Avilez, que tem, na minha opinião, um bacalhau à brás perfeito. Continua perfeito. O serviço também continua… Indigente, negligente, e tão pouco eficiente que até a conta foi trocada com a da mesa ao lado…
Terceiro exemplo: bar do hotel Bairro Alto, peço ao balcão um Gin Tónico, acrescentando a brincar - mas, no fundo, a sério - que quero um Gin normal, sem mariquice de bagas disto e daquilo, mais zimbro e pimenta rosa e cenas. Quero um Gin com gelo, limão e água tónica. A empregada convence-me a experimentar uma marca que desconheço, com o pretexto de que aquele Gin nem limão leva. Só gelo e água tónica. Aceito a sugestão. No fim, quando me apresenta a conta, a brincadeira custa 16 euros. Onde se esperava o aviso razoável de que era uma bebida com um preço fora do normal, fez-se “a barba ao cliente”, como se diz na gíria da hotelaria. Não penso lá voltar.
E assim, em três exemplos sem grande história, se desfazem os mitos que a mania do “lifestyle”, dos “sunsets” e dos “spots” nos fazem voltar rapidamente para a boa da tasca de sempre. Ou, como costumo dizer: só gosto do que já conheço…
“O cão tinha um nome por que o chamávamos e por que respondia,
mas qual seria o seu nome só o cão obscuramente sabia.
Olhava-nos com uns olhos que havia nos seus olhos mas não se via o que ele via, nem se nos via e nos reconhecia de algum modo essencial que nos escapava
ou se via o que de nós passava e não o que permanecia, o mistério que nos esclarecia.
Onde nós não alcançávamos dentro de nós o cão ia.
E aí adormecia dum sono sem remorsos e sem melancolia.
Então sonhava o sonho sólido que existia. E não compreendia.
Um dia chamámos pelo cão e ele não estava onde sempre estivera: na sua exclusiva vida.
Alguém o chamara por outro nome, um absoluto nome, de muito longe.
E o cão partira ao encontro desse nome como chegara: só.
E a mãe enterrou-o sob a buganvília dizendo: "É a vida..."
Poema lindo e cheio de Manuel António Pina, que está onde a Indy chegou há bocado.
(Texto desta semana na plataforma Sapo24) Quando era adolescente, havia nos jornais (e nos pacotes de açúcar?) uns casais de bonecos com um ar vagamente pateta que acompanhavam frases - igualmente tolas, na maioria dos casos - sob o genérico “Amor é…”. Nas últimas semanas lembrei-me deste casalinho, mas por motivos um pouco mais sérios. Por exemplo, a polémica a respeito das novas taxas de IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis), que levou, no limite, a líder centrista Assunção Cristas a afirmar, no Facebook, que “O sol já paga imposto! Parece inacreditável, mas é mesmo verdade: as casas com boas vistas ou exposição solar, independente da localização ou do rendimento do proprietário, passam a ter o IMI agravado”. A ignorância da deputada já vinha a queimar mato nas redes sociais, com todo o estilo de gozos, criticas, e um coro indignado e revoltado. Pois bem… Demagogia é… vir dizer que “O Sol Já paga imposto”, quando a lei que agora se discute é de 2007 (por acaso também de um governo socialista, o de José Sócrates…), tem 13 itens sobre “qualidade e conforto”, e a única novidade que o actual governo introduziu foi reajustar (bem ou mal, é outra discussão…) as taxas, aumentando nuns casos, diminuindo noutros… Demagogia é… virem os proprietários que vendem e arrendam casas por valores que variam conforme a exposição solar ou a vista, a varanda ou a localização, indignarem-me agora com um imposto que avalia os imóveis da mesma forma que eles próprios os avaliam. Para os donos, o preço pode subir porque os seus apartamentos têm vista - para serem taxados, não gostam da ideia. Dois pesos, duas medidas. Mas há mais: é que nestas semanas também se tem falado muito das viagens a França, por ocasião do Euro 2016, que a GALP pagou a alguns membros do Governo, e que pôs meio mundo a exigir a demissão dos “beneficiados”. Sem dúvidas o afirmo: no lugar do Secretário de Estado Rocha Andrade, que é politicamente responsável por um conflito de milhões que a petrolífera deverá ao fisco, nem hesitava na demissão. Mas já sabemos que na política nem todos seguem o mesmo código de conduta ético e moral… De qualquer forma… Demagogia é… Fazer deste caso uma bandeira da moral e dos bons costumes, quando quase todos os jornalistas, directores de jornais, administradores, editores, em lugares relacionados com as empresas que têm orçamentos para estes convites, ou que são anunciantes dos meios, passam a vida nos camarotes dos estádios de futebol em jogos cujos bilhetes não são “low cost”, em viagens pagas a todos os cantos do mundo, nas zonas VIP dos Festivais de Verão, em almoços e “eventos” recheados com presentes de toda a espécie. Demagogia é… Os mesmos políticos que pedem agora cabeças a rolar no Governo, terem, no passado, quando governavam, aceitado o mesmo tipo de convites, viajado a expensas de empresas e grupos de empresários. Muitos deles, agora em companhias privadas (com quem antes se relacionaram enquanto governantes), continuam a sentar-se nos camarotes reservados. E sem querer dramatizar o que é, em si, um drama maior, demagogia também é associar a calamidade dos incêndios a um Governo ou a um ministro. Ninguém, no seu perfeito juízo, quer ver Portugal a arder. O tema não devia servir de arma de arremesso politico. Alem de demagógico, é infeliz. O momento é de unir, não de dividir. A carinha apatetada dos bonecos do “Amor é…” é a mesma que qualquer um de nós pode fazer perante estes “escândalos”, e este drama maior. Ainda que, como no amor, por detrás destas aparentes patetices, estejam assuntos muito sérios que ajudam a explicar o verdadeiro estado da Nação. Talvez possa rematar assim: “Demagogia é… amar o próximo quando é conveniente. E dizer que nunca se amou quando a conveniência se torna muito inconveniente”.
Blog da semana
Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.
Uma boa frase
Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira
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