Quando tudo muda
(Para a Rita Fernandes, para o Jaime)
Ontem, ao final da tarde, depois de um mergulho inesperado em São Torpes, estava a beber uma cerveja com esta vista pela frente. Meio-mundo a conhece: a foz do rio Mira, em Vila Nova de Milfontes, onde a água doce se mistura com a salgada, num confronto sem vencedores nem vencidos.
E como os pensamentos correm como a água, sem fronteiras que os travem ou limitem, lembrei-me por que fui parar a Milfontes, em 1987, e por que motivo desde aí troquei o aparentemente eterno triângulo Penedo/Praia Grande/Colares pelo Alentejo - que começou aqui, depois passou pela Zambujeira-do-Mar, e nos últimos anos parece ter aterrado de vez em Melides. A razão é tão simples como profunda e marcante: a morte do meu pai, em Fevereiro de 1987, mudou tudo na vida do jovem de 22 anos que eu era, e para quem a vida não tinha a morte incluída.
Para mim, naquele tempo (como hoje), o Penedo, a Praia Grande, Almoçageme, Colares, eram os lugares do meu pai: do “Funçageiro” de Colares ao “Café do Pinto” (onde ele convencera a aldeia de que as imagens da chegada do homem à Lua eram desenhos animados…), passando pelas conversas na Praia, com a Dona Luísa, sobre o método de fabrico da Bola de Berlim, ou os cafés nocturnos no Bibió, por entre bandejas vindas de todo o planeta. Naquele final da década de 80, a zona estava tomada por memórias que me faziam sofrer e que queria evitar. Tinha de continuar a viver, essa era a verdade dos factos.
Foi assim que desci, costa abaixo, à procura de lugares virgens, sem História, e onde pudesse viver uma vida que me tinha sido mudada sem aviso prévio. E foi assim que cheguei a Milfontes, à Longueira, à Zambujeira, a Almograve, e desbravei toda a costa alentejana até me fixar em Melides.
Hoje, quase 30 anos depois da morte do meu pai, já consigo voltar ao Penedo, ou à Praia Grande, com gosto. A memória perdeu o sabor amargo e ficou apenas doce. Olho alguns pessoas daquele tempo, que raramente me reconhecem, e gosto de saber quem são. Há lugares que não mudaram e sinto-me confortado. Passou muito tempo e tudo ficou mais suave. O tempo passa.
O mesmo tempo que ontem, olhando a foz do Mira, me pareceu já distante. Mas ainda assim familiar, doce, e de alguma forma pessoal e intransmissível. Deve ser isso aquilo a que chamam, de forma comum, “recordações”. Pode ser que sejam - mas são o que resta do que vivemos e deixou marca. Sinto-me mais rico com elas.