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Pedro Rolo Duarte

29
Nov16

A idade calçada

IMG_2422.jpgSala de espera de uma consulta. Ao meu lado estão duas mulheres, que percebo pela conversa serem irmãs ou cunhadas. Devem ter ambas mais ou menos 60 anos. Iguais à mais normal mulher portuguesa com que nos cruzamos diariamente. "Pobres mas honradas", "pelo menos não andamos aí a roubar e temos uma vida honesta", "Ainda há mulheres sérias em Portugal". Normalmente as mãos cheiram a lexivia, há uma malhinha por cima de um camiseiro simples, calças de poliéster, uma carteira que vai debaixo do braço. Porém, no conjunto, há aqui nuances.
Uma. Passa o tempo a lamentar-se porque o lenço já está sujo e ainda agora começou a assoar-se, porque as bolachas que trouxe afinal estão moles, porque está mais gente à espera do que é costume. E viste que há mais de 40 mulheres presas por matar? E dizem que são só eles a matá-las? E esta dor que não passa? A Dra parece que não me ouve.
A outra. Agarrada ao telefone. Afinal a Isilda diz que os coentros pegaram lá naquele cantinho ao pé das favas! Eu sempre disse que era só não deixar o gato andar por ali… Os gatos são manhosos, e há cheiros que lhes dão vontade. Lá na Assafora, quem tinha hortas não deixava os gatos andarem à solta. Isto hoje está demorado. Deve ser por ser fim do mês. O Ruben que vá fazendo os trabalhos de casa. Ah, sim, e receberam o subsídio de Natal - em vez de prendas, vão ao médico…
Uma. Já nem para a saúde sobra. Os remédios que levei para o miúdo da Natália custaram 50 euros, já com o desconto. Não sei onde é que isto vai parar. Mais vale morrer, é mais barato.
A outra. Ai mulher, não sejas assim, que coisa.
Uma. Também já calças ténis. Tá bonito tá.
A outra. Cómodos e quentinhos. Essa é que é essa. E olha que até me parece que as pernas aleijam menos quando as dobro.

Chamam a senha 23. Só fiquei com a imagem dos sapatos que marcam a diferença. O preço é o mesmo, acho que ainda ouvi.

27
Nov16

Cuba, outra vez

A idade é lixada, mas às vezes ainda ajuda: ía escrever sobre Cuba, a propósito da morte de Fidel, mas uma qualquer campainha, ainda com pilhas na memória, me avisou que já o tinha feito, neste mesmo Blog, há uns anos. Em rigor, em Fevereiro de 2008, quando o ditador se retirou da boca de cena. Percebi que iria basicamente repetir a mesma lengalenga de há 8 anos. Achei mais sensato - e poupado, também para os neurónios… - ir buscar o texto original, “Dez Dias em Cuba”, e republicá-lo. Cá fica:


“O que restava de certa esquerda a correr-me no sangue foi varrido em escassos dez dias, nos idos de 1993, quando umas inesperadas férias me levaram a Cuba.
Parti na legitima e pacifica intenção de namorar, fazer praia e conhecer Havana. O Cáceres Monteiro, grande jornalista (e bom amigo, saudade...), que por lá tinha andado em trabalho diversas vezes, desenhou-me um “roteiro de repórter” que começava, naturalmente, no Hotel Havana Livre, onde Fidel se instalara depois da triunfante entrada na cidade, em 1959. E passava por todos os ícones da capital cubana, da Bodeguita del Medio ao clássico Centro de Imprensa Internacional.
Confesso que aterrei em Havana com uma vaga, muito vaga esperança de encontrar um povo realmente feliz, apesar de todas as limitações com que vivia. Um povo feliz, apesar do embargo. Conversei com taxistas, empregados de hotel, banheiros da praia, médicos, professores. Encontrei gente invulgarmente culta e formada.
Mas, em vez dessa felicidade que a propaganda vendia a rodos, em vez desse povo em festa permanente nas ruas, imagem de cartaz e de postal, encontrei miséria em todos os cantos e recantos da Ilha. Miséria disfarçada e escondida numa paz podre feita de policias que controlavam policias e outros policias para controlar os restantes. Miséria descarada nos racionamentos, nos professores universitários que acumulavam empregos para poder comprar um frango. Miséria humilhada na prostituição dentro dos hotéis e à porta das “lojas de turistas”. Miséria travestida de artesanato barato, charutos aldrabados e “paisagem típica” que não passava de degradação e sujidade.
Como se fosse pouco, a liberdade não passava por ali.
E quanto à alegria de viver, nem a sombra: vi nostalgia, saudade, desconsolo e desalento.
Foram dez dias a tentar ter férias num país que não se cansava de me mostrar que não havia mais “amanhãs que cantam” em parte alguma do planeta. Foi mesmo assim: o que restava de certa esquerda a correr-me no sangue foi varrido em escassos dez dias.
Demorei dias, semanas, a conter, controlar e aplacar a tristeza que me invadiu o olhar no dia em que deixei Havana. Ali ficou o último resquício da adolescência. O último bocadinho de utopia. Uma lasca de um muro que começara a cair em 1980, no meu pequeno mundo, e que ruiu por completo, no mundo de todos nós, nesse feliz final de 1989.
Essa tristeza que trouxe de Cuba continua por perto enquanto a agonia daquele regime durar. Não é demais lembrar: o regime não terminou ontem.
Nota - Lembrei-me desta viagem por causa de Fidel, sim – mas especialmente por me ter deslumbrado este texto de Ana de Amsterdam.”


26
Nov16

Não vá o optimismo entusiasmar-se…

(Crónica do Sapo24 de quinta-feira passada.)
Há dias em que, por efeito do sol ou de uma qualquer descarga extra de serotonina pelo corpo fora, acreditamos a acordar que o Mundo, apesar de Trump, é hoje um lugar melhor e mais simpático para viver, e o ser humano tem tendência para se tornar mais civilizado e sensato.
Porém…
… Porém, é melhor não mergulhar de cabeça nesse caldeirão, que além de ser mais pequeno que o de Obélix - o que pode deixar marcas no mergulho… -, com frequência é desmentido pela realidade, como sucedeu nas últimas semanas. Mesmo que, em geral, a paisagem possa parecer mais bonita, uma aproximação à realidade portuguesa pode estragar tudo. E depressa. A única forma de prevenir o choque, e o consequente trauma, é estar preparado para o pior.
Um conselho que pode ser muito útil, para baixar expectativas, e evitar frustrações, nos dias que correm: sempre que, num momento de inexplicável optimismo, acharem que a sociedade ocidental tem evoluído, que somos hoje mais inclusivos, menos racistas, homofóbicos, sexistas, enfim, que estamos no caminho que vai de encontro à Declaração Universal dos Direitos do Homem, abram um jornal desportivo. E caiam na realidade. É um bom exercício.
Podem ter a “sorte” de apanhar um dia mais morno, sem grandes manchetes ou histórias cabeludas. Mas é raro… Em geral, levam sempre um banho de realidade que tanto pode passar por uma agressão animalesca como uma troca de insultos que envolvem toda a familia dos envolvidos - ou, nos casos mais pitorescos, uma cuspidela que envolve líderes de clubes presumivelmente adultos e educados.
Sobre a famosa cuspidela, não adianta chover no molhado. Daqui a cem anos, quando os Historiadores andarem a vasculhar os media de 2016, vão certamente estranhar o interesse e a minúcia com que o tema foi explorado e debatido, numa obsessão quase doentia que, no limite, levou um dos protagonistas a ter o momento iluminado de explicar as cuspidelas dos jogadores em campo como um reflexo nervoso próprio do futebol…
Estávamos a fechar o capitulo “Saliva que se expele da boca” (cito dicionário, claro), quando a mesma imprensa desportiva revela que, num desencontro verbal entre Cristiano Ronaldo e Koke, durante o Atlético Madrid - Real Madrid, de sábado passado, ao ser chamado de “maricas”, Ronaldo terá respondido: “Sou maricas mas cheio de dinheiro”…
Repare-se na sofisticação e lógica da resposta: à ideia de “maricas” responde-se com… dinheiro. Podia ter sido “Sou maricas mas sou o melhor jogador do mundo” ou “Sou maricas mas tenho uma cadeia de hotéis com o meu nome”. Tanto faz. Trata-se de uma nova forma de associação que nos pode levar longe - eu chamo socialista ao adversário, e ele arruma-me: “sou socialista mas sou do Benfica!”; “sou louro mas sei cozinhar!”, e não tem fim o ridículo de conjugações que podemos encontrar.
E ficaríamos pela brincadeira parva não se desse o caso da resposta de Ronaldo - como o “insulto” de Koke - não revelassem que, apesar das leis, da boa vontade e das melhores intenções, nada mudou muito mais do que, como canta Sérgio Godinho, na “ilusão das aparências”. Quando chega a hora da verdade, quando o sangue ferve e o raciocínio deixa de ter filtro, a maioria de nós volta a ver tudo a preto e branco, mergulhada nos mesmos preconceitos, intoxicada pelo mesmo passado. Nessa medida, o mundo do futebol continua a ser um dos mais fieis barómetros da nossa realidade social - e uma forma segura de baixarmos as expectativas e aceitarmos que continua tudo por fazer. Mesmo quando estamos cheios de dinheiro. O que nem sequer é o caso.

23
Nov16

80 anos

161115-life-magazine-1936.jpeg

Há 80 anos, neste dia, nasceu a revista que mudou tudo o que o jornalismo pensava sobre si próprio. Sublinho: não mudou o jornalismo. Apenas a forma de o pensar semana a semana.

E é o que mais falta nos dias que correm: pensar. Raio de verbo.

21
Nov16

A insustentável insolvência da memória

(Esta semana, reparei que muitos jornalistas e ex-jornalistas do Diário de Notícias deixaram, entre redes sociais e blogues, testemunhos e memórias sobre o edifício-sede do jornal, junto ao Marquês. Percebi rapidamente que se levava a cabo, por fim, uma ideia que várias administrações do DN tiveram, mas que só esta foi capaz de levar a cabo: vender o edifício e mudar para paisagens mais baratas. Entre tentar o desabafo e deixar a memória, cá fica também o meu testemunho…)

 

Escrevi no Diário de IMG_2384.JPGNotícias, ininterruptamente, entre 1982 e 2007. Ou seja, durante 25 anos. Não fiz o percurso comum, do estágio aos cargos de direcção, mas estive sempre por perto e muitas vezes por dentro. Comecei da forma mais óbvia: ofereci-me, por carta, ao Alexandre Manuel e ao Rogério Petinga, que tinham poderes sobre a área dos espectáculos. Publicara (gratuitamente), durante algum tempo, no “Correio dos Jovens”, do Correio da Manhã, era altura de dar um passo em frente. Consegui. Por 12,50 euros, “conquistei” meia página semanal, sobre música e espectáculos, no suplemento de sábado. Mais tarde, o Mário Bettencourt-Resendes chegou à Direcção do jornal e, sem me conhecer de parte alguma (na primeira vez que jantámos, vi-me forçado a perguntar ao empregado do restaurante qual daqueles 4 ou 5 homens, que estavam sozinhos na sala, era o Mário que eu procurava…), puxou por mim: escrevi sobre futebol, fiz entrevistas, crítica de TV, tornei-me cronista fixo do primeiro caderno.

Só não fui editor-executivo porque, convite feito, no dia em que iria aceitar, vi um artigo meu, publicado um mês antes na revista “K”, com o titulo “O Jornalismo já Acabou”, fotocopiado e ampliado, pendurado pelas paredes da redacção, com umas bocas do género “este vai ser o nosso próximo editor-executivo!”. No artigo, que era um exercício de puro futurismo, num tempo em que nem havia internet, ousei “adivinhar” (a partir da chegada tímida do “Photoshop”…) que, num tempo não muito distante, o consumidor iria poder escolher a verdade que lhe desse jeito ou agradasse, porque a profusão de fontes, canais de comunicação, e formas de manipular a realidade, iriam matar uma das essências da profissão: a mediação. Não queria ter razão, acreditem, mas infelizmente parece que estou a tê-la…

Voltando ao DN: não gostei daquele ambiente pouco acolhedor, entre pares, na redacção, era demasiado novo para deixar de ver o trabalho como um prazer, e voltei atrás, deixando-me estar mais uns meses no caos divertido da “K”. Provavelmente, em boa hora - pois foi esse recuo que, uns anos mais tarde, deu origem ao DNA. Na verdade, o suplemento começou fora do jornal, como um “fornecimento de serviços”, e só em 2000 ocupei um posto fixo, com contrato e regalias, no DN - o que durou até 2006, com a passagem de um ano pela direcção do jornal, a convite do Miguel Coutinho. Outras histórias…

Agora, quando vi esses testemunhos de colegas sobre o edifício, procurei na memória uma imagem que esses 30 anos me tivessem deixado. Não pelo jornal, mas pelo edifício. E o que me ocorreu foi um momento que constituiu mais uma lição de vida - a que só os anos podem dar valor. Passou-se num assembleia geral de trabalhadores, em plena redacção, no dia em que a Lusomundo anunciou a venda do edifício e a passagem do DN para Cabo Ruivo, junto à Expo (venda mais tarde abortada, muito por força da chamada “sociedade civil”, aliada à família Soares). Para quem, como eu, jovem jornalista, já tinha trabalhado em Algés, Restelo, Saldanha, Bairro Alto, Amoreiras, Lumiar, uma mudança era apenas uma mudança e não valia nada. Mas, depois de ouvir os argumentos da maioria dos presentes - alguns tinham casado e escolhido casa para comprar em função da localização do DN… - entendi que, para a maioria daquelas pessoas, aquele edifício não era apenas um local de trabalho. Era uma segunda casa. Em casos mais solitários, a primeira. Viviam em função daquela geografia - e tinham construído uma vida à sua volta.

Noto que, mais de dez anos depois, apesar dos actuais donos do jornal se estarem nas tintas para este facto, parece ter regressado, nos países civilizados, a cultura da geografia como parte integrante e valor-acrescentado nos contributos para a produtividade e a qualidade do produto final. Mas isso não interessa nada, é coisa de países nórdicos…

Em rigor, não me interessa muito para onde vai o DN, nem se a engenharia financeira dá razão ao negocio. Mas sinto esta mudança como um passo mais em dois sentidos que, noutros lugares, já se percebeu que não levam a lado algum, a não ser ao abismo:

1. Uma marca é feita pelo conjunto de pessoas que a fazem todos os dias - descartar o que pensam ou sentem é como tirar baterias a uma lanterna.

2. Pretender apagar a memória - das pessoas e dos factos -, com uma mudança de localização, pode ter bons efeitos práticos, mas na bolsa dos valores emocionais de uma marca, como o Diário de Notícias, é o mesmo que acreditar na insolvência do passado.

... E isso eu aprendi, com os mais velhos, naquele assembleia que tinha tudo para parecer anacrónica - mas era afinal a única que ainda fazia algum sentido: podemos levar à falência e declarar a insolvência de tudo. Excepto da memória. O DN já não é o que foi - mas também já não será o que nunca foi. Ou dito de outro modo: podem tirar o jornal do seu lugar; jamais tirarão o jornal do lugar que lhe pertence.

15
Nov16

Nono ano

Este blog faz hoje nove anos. Por uma vez, deixemos a palavra aos desígnios da sorte e do destino - e de um desses sites sobre numerologia, sai o texto inspirador:

nove anos.jpg“O número 9 é o final de um ciclo e começo de outro. Este número está associado ao altruísmo, a fraternidade e espiritualidade. O que compreende. Palavra chave: Realização, universalidade, abnegação, compaixão. O nove representa a realização total do homem com todas as suas aspirações atendidas e seus desejos satisfeitos. Ele é capaz de dedicar-se ao amor universal, incondicional por tudo e por todos. Busca a perfeição. Este número representa a mais alta forma do amor universal. É o número da grande sabedoria e poder espiritual, já que contém a experiência de todos os números anteriores. Representa a plenitude espiritual. Associa-se à totalidade e à conclusão.”


Sendo assim sigamos para o décimo ano. Começa hoje.

10
Nov16

Na hora da verdade, cada um por si

(Crónica de hoje na plataforma/newsletter Sapo24)

O lugar-comum que faz titulo desta crónica podia ser dito a respeito dos portugueses, dos espanhóis, dos franceses, dos ingleses, e de mais um generoso conjunto de povos dispersos que, por razões mais ou menos explicáveis, se tornaram países.
De todos, os Estados Unidos da América talvez constituam o conjunto do estados que melhor espelha a bipolaridade de um mundo ocidental que enche a boca com a democracia e a liberdade mas, quando fecha a porta de casa, ao fim do dia, prefere a segurança com uma espingarda na mão, e esquece quem construiu as torres onde trabalha diariamente…
A enorme comédia (ou tragédia…) desta campanha eleitoral americana talvez tenha sido mostrar, da forma mais rasca, básica, elementar, a contradição de que todos somos feitos entre a defesa de um regime “sexy” e a ameaça que sentimos diariamente. Trump promete um muro a separar o México dos EUA? A Europa ergue muros no Tunel de Mancha, em Calais, na Hungria. Trump é javardo e ordinário com as mulheres? E que fazem tantos militares a quem cabia defender refugiadas e imigrantes na Europa?
A ideia é sempre a mesma: nas eleições de há dois dias nos Estados Unidos, como na fragmentação ideológica e moral da Europa, o que está em causa é a profunda divergência entre o que a maioria pensa sobre a democracia e a forma como, perante a mais escassa ameaça, muda a atitude, mesmo que diga que não muda de ideias.
A democracia, o estado social, a liberdade, a livre circulação de pessoas e bens, a partilha cultural e a inclusão - tudo isto só faz sentido enquanto não são ameaçada as nossas pequenas coisinhas: a casinha e os seus electrodomésticos, o carrinho e a pintura metalizada, a ameaça de bomba no Metro, o emprego e o subsidio anual para as férias no resort em Cancun.
Um dos falhanços mais burros do comunismo foi presumir que mudava a essência do ser humano, que trocava ambição por solidariedade, concorrência por complementaridade, e personalidades por cabeças acéfalas. Um pouco menos mal, a democracia presume que, sendo todos diferentes, somos capazes de, nos momentos chave, nos unirmos em nome de ética, moral, valores e um conjunto de bons princípios. Já vimos que sim. Já vimos que não.
… Ou seja, lamentavelmente, parece não ser (sempre) verdade. Sentados nos sofás a ver pela TV o lavar de roupa suja, talvez tenhamos tido a tentação de pensar que na Europa as coisa são diferentes. Receio que não. Donald Trump foi o grunho sem filtro que, na hora da verdade, disse o que boa parte de nós faz: os outros que se lixem. Esperava que o feitiço se virasse contra ele. Mas nem isso aconteceu. O caos está descarado.

08
Nov16

A verdade mentirosa dos números

(Na plataforma Sapo24 desde quinta-feira passada....)

A história é velha, e sempre igual: eu como uma galinha inteira, o leitor come raspas. Para efeitos estatísticos, cada um de nós comeu meia-galinha… E não consigo deixar de pensar nesta anedota sempre que se publicam estatísticas - talvez a verdade mais mentirosa que a aritmética criou. Nos últimos dias, tivemos uma série de estudos “oficiais” que servem para todos os gostos, seja o comilão da galinha ou o esfomeado que ficou a ver navios.

 A saber, e para começo de conversa: o Instituto Nacional de Estatística veio anunciar, com optimismo, que a emigração baixou 18,5% em 2015. É certo que o número dos que sairiam, entre emigrantes temporários e de longa duração, se manteve assustadoramente acima dos 100 mil, como também é certo que regressaram mais portugueses à pátria. Mas lá vem a cena da galinha: no saldo final, o défice continua acima dos 10 mil cidadãos a mais fora de portas, já descontados os regressos.

Confesso: estes números não me dizem nada, nem consigo, como os “especialistas”, ver-lhes sinais de um presumível “capital de esperança” que anima os meus concidadãos e os leva a acreditar que dez euros a mais numa pensão miserável é um bom argumento para apostar em Portugal. Pelo contrário: no mesmo dia em que estas notícias eram divulgadas, uma infeliz coincidência levou-me a passar o dia no concelho de Odemira, entre São Teotónio, Brejão e Almograve. Apesar de ser feriado, havia muita gente a trabalhar nas estufas que inundam toda aquela costa alentejana. E deu-se este fenómeno extraordinário: o maior número de portugueses que vi juntos eram os que saíam da missa do meio-dia…

No resto, entre supermercados e cafés, nas ruas, nas praças, entrando e saindo de camionetas, vi magotes de trabalhadores da Índia, do Nepal, do Bangladesh. A população envelhecida do Alentejo não aguenta a dureza do trabalho, e os mais novos fugiram para novas paragens. O exemplo é empírico e fruto de mera observação - mas não demonstra qualquer “capital de esperança”, como não deixo de ouvir os filhos dos meus amigos, quase todos na casa dos 20 anos, darem como certo o abandono do país à procura de melhor trabalho, mais bem remunerado, longe daqui.

Vá, para um final feliz: gosto de saber que os portugueses casam mais, e divorciam-se menos. Para este dado, o casamento homossexual terá dado o seu relevante contributo - mas a ver por estudos semelhantes feitos aqui no país vizinhos, a descida dos divórcios deve-se mais à crise - ou seja, à falta de dinheiro para assumir uma vida a solo… - do que ao amor eterno. Só espero que o aumento dos casamentos, apesar de tudo, seja por amor - e não apenas por interesse na partilha das despesas. E das galinhas.

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Blog da semana

Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.

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