Cuba, outra vez
A idade é lixada, mas às vezes ainda ajuda: ía escrever sobre Cuba, a propósito da morte de Fidel, mas uma qualquer campainha, ainda com pilhas na memória, me avisou que já o tinha feito, neste mesmo Blog, há uns anos. Em rigor, em Fevereiro de 2008, quando o ditador se retirou da boca de cena. Percebi que iria basicamente repetir a mesma lengalenga de há 8 anos. Achei mais sensato - e poupado, também para os neurónios… - ir buscar o texto original, “Dez Dias em Cuba”, e republicá-lo. Cá fica:
“O que restava de certa esquerda a correr-me no sangue foi varrido em escassos dez dias, nos idos de 1993, quando umas inesperadas férias me levaram a Cuba.
Parti na legitima e pacifica intenção de namorar, fazer praia e conhecer Havana. O Cáceres Monteiro, grande jornalista (e bom amigo, saudade...), que por lá tinha andado em trabalho diversas vezes, desenhou-me um “roteiro de repórter” que começava, naturalmente, no Hotel Havana Livre, onde Fidel se instalara depois da triunfante entrada na cidade, em 1959. E passava por todos os ícones da capital cubana, da Bodeguita del Medio ao clássico Centro de Imprensa Internacional.
Confesso que aterrei em Havana com uma vaga, muito vaga esperança de encontrar um povo realmente feliz, apesar de todas as limitações com que vivia. Um povo feliz, apesar do embargo. Conversei com taxistas, empregados de hotel, banheiros da praia, médicos, professores. Encontrei gente invulgarmente culta e formada.
Mas, em vez dessa felicidade que a propaganda vendia a rodos, em vez desse povo em festa permanente nas ruas, imagem de cartaz e de postal, encontrei miséria em todos os cantos e recantos da Ilha. Miséria disfarçada e escondida numa paz podre feita de policias que controlavam policias e outros policias para controlar os restantes. Miséria descarada nos racionamentos, nos professores universitários que acumulavam empregos para poder comprar um frango. Miséria humilhada na prostituição dentro dos hotéis e à porta das “lojas de turistas”. Miséria travestida de artesanato barato, charutos aldrabados e “paisagem típica” que não passava de degradação e sujidade.
Como se fosse pouco, a liberdade não passava por ali.
E quanto à alegria de viver, nem a sombra: vi nostalgia, saudade, desconsolo e desalento.
Foram dez dias a tentar ter férias num país que não se cansava de me mostrar que não havia mais “amanhãs que cantam” em parte alguma do planeta. Foi mesmo assim: o que restava de certa esquerda a correr-me no sangue foi varrido em escassos dez dias.
Demorei dias, semanas, a conter, controlar e aplacar a tristeza que me invadiu o olhar no dia em que deixei Havana. Ali ficou o último resquício da adolescência. O último bocadinho de utopia. Uma lasca de um muro que começara a cair em 1980, no meu pequeno mundo, e que ruiu por completo, no mundo de todos nós, nesse feliz final de 1989.
Essa tristeza que trouxe de Cuba continua por perto enquanto a agonia daquele regime durar. Não é demais lembrar: o regime não terminou ontem.
Nota - Lembrei-me desta viagem por causa de Fidel, sim – mas especialmente por me ter deslumbrado este texto de Ana de Amsterdam.”