A idade calçada
Sala de espera de uma consulta. Ao meu lado estão duas mulheres, que percebo pela conversa serem irmãs ou cunhadas. Devem ter ambas mais ou menos 60 anos. Iguais à mais normal mulher portuguesa com que nos cruzamos diariamente. "Pobres mas honradas", "pelo menos não andamos aí a roubar e temos uma vida honesta", "Ainda há mulheres sérias em Portugal". Normalmente as mãos cheiram a lexivia, há uma malhinha por cima de um camiseiro simples, calças de poliéster, uma carteira que vai debaixo do braço. Porém, no conjunto, há aqui nuances.
Uma. Passa o tempo a lamentar-se porque o lenço já está sujo e ainda agora começou a assoar-se, porque as bolachas que trouxe afinal estão moles, porque está mais gente à espera do que é costume. E viste que há mais de 40 mulheres presas por matar? E dizem que são só eles a matá-las? E esta dor que não passa? A Dra parece que não me ouve.
A outra. Agarrada ao telefone. Afinal a Isilda diz que os coentros pegaram lá naquele cantinho ao pé das favas! Eu sempre disse que era só não deixar o gato andar por ali… Os gatos são manhosos, e há cheiros que lhes dão vontade. Lá na Assafora, quem tinha hortas não deixava os gatos andarem à solta. Isto hoje está demorado. Deve ser por ser fim do mês. O Ruben que vá fazendo os trabalhos de casa. Ah, sim, e receberam o subsídio de Natal - em vez de prendas, vão ao médico…
Uma. Já nem para a saúde sobra. Os remédios que levei para o miúdo da Natália custaram 50 euros, já com o desconto. Não sei onde é que isto vai parar. Mais vale morrer, é mais barato.
A outra. Ai mulher, não sejas assim, que coisa.
Uma. Também já calças ténis. Tá bonito tá.
A outra. Cómodos e quentinhos. Essa é que é essa. E olha que até me parece que as pernas aleijam menos quando as dobro.
Chamam a senha 23. Só fiquei com a imagem dos sapatos que marcam a diferença. O preço é o mesmo, acho que ainda ouvi.