Li por estes dias “O Imenso Adeus”, de Raymond Chandler, um dos clássicos que tinha falhado, e para o qual a reedição da colecção “Vampiro” (renovada e recriada...), me acordou. Em boa hora e por menos de dez euros...
Foi no meio dessa leitura – que tem tanto de policial quanto de poética... -, que soube, pela imprensa espanhola, que os nossos vizinhos estão a recuperar bem da crise do universo editorial, voltando a números de vendas de 2008. O que me chamou a atenção foi o titulo da matéria do El Mundo: “Se Espanha tivesse 100 livros... 75 seriam em papel”. O pretexto era o Dia de San Jordi, que em Barcelona é “recheado” a livros e rosas, transformando a cidade na mais romântica e bonita do planeta - e além dessa boa nova de recuperação económica, junta-se-lhe o facto da edição em papel não sofrer grandemente com os livros digitais e os kindle’s e outros eBooks desta vida. Gosto disso. Como militante do papel, em todas as suas frentes, não leio em ecrã mais do que a profissão me exige, ou o mercado me obriga, e espero que resista com saúde no que lhe resta viável: livros, revistas, publicações que escapem à voragem dos dias. Da mesma forma que reconheço, com tristeza, a efectiva falência do jornal diário em papel – tão anacrónico como o pão de ontem -, não deixo por mãos alheias o prazer de uma revista impressa, um artigo longo que se lê devagar, às vezes em dias seguidos, numa esplanada, sem falta de bateria nem riscos no ecrã. Ou a superior impressão de uma fotografia do nosso mais querido autor.
As notícias do mercado espanhol inspiram, mas é área em que podemos responder à altura. Sem saber dos números mais actuais (ainda que seja claro e oficial que, nos últimos 30 anos, foi de quase 200% o aumento do numero de livros publicados em Portugal!), parece evidente que este é seguramente o mais dinâmico dos sectores da cultura nacional, com um generoso numero de editoras a publicar dezenas de livros por semana, mesmo com tiragens pequenas. Os queixumes são os de sempre, mas a verdade é que o preço de editar um livro, entre nós, é baixo, o que torna a margem de risco editorial aceitável, e razoável a convivência entre os grandes editores, conglomerados de chancelas já existentes, e os pequenos independentes.
O livro foi, para o bem e para o mal, dessacralizado. Há quem veja nisso um crime de lesa-cultura, traduzido na frase “qualquer bicho-careta publica em livro” – mas confesso que, ainda que também me façam confusão algumas edições, que juntam receitas de beleza à base de frutas e enchidos, ou conselhos sobre criação de tartarugas e outros animais anfíbios, prefiro um mercado que tem espaço para todos, do que aquele que conheci, quando comecei a trabalhar, dominado por meia-duzia de editores que decidiam o que merecia ser editado, e nessa decisão deixavam de fora muitas das que seriam, então, as revelações que faziam falta.
Hoje, não há quem não tenha oportunidade de publicar, há livros para todos os gostos, graus de exigência, níveis de conhecimento. Ler já não é um verbo de elite – e por mais que me incomodem alguns títulos, algumas abordagens, alguns aproveitamentos de fenómenos de moda e popularidade, prefiro este caos editorial (que leva, no limite, à injustiça de termos edições que estão poucas semanas disponíveis, dada a escassez de espaço para armazenar stocks), à plutocracia cultural que durante dezenas de anos dominou a edição.
O prazer de ler um policial de Chandler, ao lado de uma revelação do Prémio Leya e de um livro de receitas de ceviches, é um dos melhores dados sobre o estado da Nação. Que bom, por instantes, poder ser optimista e acreditar neste “nosso Portugal”, sem cair na tentação da frase banal: “se fosse lá fora...”. Cá dentro, neste caso, é que é.
O ser humano tem este dom extraordinário de usar pesos e medidas diferentes para situações semelhantes, dando sentido à expressão “albardar o burro à vontade do dono”, e com isso justificando qualquer espécie de atitude. Até mesmo apanhar sarampo, doença que julgava erradicada do nosso horizonte.
Pelos vistos, não está. E o anormal numero de casos que se estão a registar no nosso país, com a primeira vítima a despertar, lamentavelmente, o pior juiz que há dentro de nós, veio reabrir o debate sobre a vacinação e a sua potencial obrigatoriedade. Há um movimento crescente de cidadãos que, por razões diversas – filosóficas, politicas, éticas, ou apenas vitimado pelo vírus da “teoria da conspiração” -, acha que pode não vacinar os seus filhos. Essas pessoas alegam, evidentemente, a liberdade individual sobre o corpo, e sobre o corpo dos filhos, e alimentam as mais diversas teses sobre a industria farmacêutica e a sua sede de lucro. Chegam a perguntar, como vi numa rede social, quanto ganham dessas empresas aqueles que, como eu, defendem a vacinação... Um alucinado adepto de futebol não faria melhor em relação aos árbitros. Dado que é recomendada mas não é obrigatória, nada acontece a estas pessoas – mesmo que, por falta de vacina, os seus filhos contraiam sarampo e contagiem o vizinho do lado.
Gritam esses anti-vacinas: “Se o vizinho estiver vacinado, não tem de temer o meu filho!”. Errado. Ainda que a cobertura da vacinação seja superior aos 95% que fazem com que se considere o país “imune”, há pessoas que, mesmo vacinadas, podem apanhar sarampo. Ou seja: o que parecia ser uma decisão individual cujas consequências não saiam de casa do inconsciente de serviço, mexe afinal com a vida do vizinho. Deixa, portanto, de ser um problema pessoal, para ganhar domínio colectivo. E é aqui que estamos.
Aceitam-se obrigatoriedades como o cinto de segurança, a proibição do fumo nos espaços públicos; obrigam-se os proprietários de veículos a inspecioná-los de tempos a tempos; os condutores são observados por médicos, a partir dos 50 anos, para poderem guiar; os restaurantes são vigiados pela ASAE e os produtos têm prazos de validade. Aceitamos leis e mais leis, obrigações e mais obrigações – muitas delas pouco ou nada sustentáveis, algumas transformadas em taxas e impostos (já repararam que pagamos um imposto para circular e outro para termos os veículos estacionados? E somos obrigados...). Mas depois debate-se uma questão grave de saúde publica e “ai, jesus”, a liberdade individual está acima do mais elementar bom senso. Dois pesos, duas medidas, para situações em que a nossa atitude pode prejudicar a vida do vizinho do lado ou do incauto com quem nos cruzamos.
Leio na revista “Visão” que, nos anos 90, um estudo de um tal Andrew Wakefield tentou demonstrar a relação entre autismo e as vacinas contra o sarampo, a papeira e a rubéola. Já se provou que era falso, uma fraude, uma invenção. Mas como não há vacina contra a ignorância, continuamos dependentes do supremo “achismo” de quem resiste a vacinar os filhos. Até ao dia.
Confesso a minha perplexidade, ou talvez apenas ingenuidade: não julgava possível que em pleno século XXI estivéssemos a debater os prós e os contras de um medicamento que salvou milhões de vidas no século XX. Não me passaria pela cabeça ler a notícia de uma morte – e não ando à procura de culpados, apenas reconheço o choque e sinto a incredulidade. Não me ocorreria sequer a dúvida sobre esta matéria.
Mas agora percebo por que se reabre o debate. É que falta mesmo uma última vacina. E não é contra o sarampo.
A chamada “pós-verdade” - a que chamo apenas, com maior rigor, mentira - anda de tal forma a cercar-nos, a instalar-se, e a fazer do seu pernicioso carácter um dado a ter em conta, e uma desconfiança permanente, que duvidei daquele vídeo que exibe a joelhada de um futebolista ao árbitro, logo no começo de um desafio regional qualquer. Pior: custou-me acreditar nos militantes das redes sociais que garantiam que o autor daquela alarvidade era não apenas adepto das claques portistas, como tinha estado no jogo, entre Benfica e Futebol Clube do Porto, que animou o fim-de-semana passado. Pelos vistos, o que achei digno de uma “pós-verdade”, ou de uma graça de mau gosto no primeiro dia de Abril, foi verdade, aconteceu, e o juiz que fez a primeira aproximação ao caso entendeu que o arguido não merecia mais do que termo de identidade e residência. Não discuto essa infeliz e parca decisão. Mas discuto o facto e a circunstância de ter ocorrido num tempo em que também se debate a verdade e o que entendemos sobre ela.
Em países como o Reino Unido, o dia 1 de Abril mereceu matérias, como a do Sunday Times, em que se questionava a tradição do dia das mentiras face ao crescente peso das “fake news” nos meios de comunicação. O jornal afirma que Donald Trump popularizou a ideia, ainda que ela tenha ganho corpo bem antes de ser sequer candidato a presidente dos Estado Unidos da América.
“Como vão os jornais sobreviver ao tempo dos factos alternativos?”, interrogava-se, com alguma ironia, o “Times”. Faço minhas as interrogações do jornal. Porém, vejo-as válidas também no sentido contrário: quem nos garante que, por serem assinadas por um jornal, ou relatadas por um canal de cabo dedicado a noticias, os factos correspondem ao que efectivamente ocorreu?
Foi o que pensei quando vi a cena da joelhada – digna de um clube de futebol de um país de terceiro mundo, impossível numa geografia que pretende ser respeitada como país da Europa. Sabendo embora que o futebol tem um lado irracional, em que o imponderável domina, acreditei, até agora, que as autoridades, os serviços de informação, enfim, quem controla claques - e energúmenos que se dedicam a dar cabo do melhor que o futebol pode ter -, saberiam por onde anda esta espécie de pessoas, e do que são capazes, não apenas no dia do mediático encontro entre clubes rivais, mas nos outros dias. E especialmente nos outros jogos - por acaso, o dos medíocres clubes a que fingem pertencer, jogando tão mal que envergonham a claque que lideram...
Afinal, estava enganado. As autoridades vestem a farda no dia do desafio, e depois deixam à solta estes seres, permitindo que se chegue ao cumulo de acharmos que só pode ser mentira o que, afinal, foi mesmo verdade.
O que daqui resulta é mais simples e óbvio do que se julga. “Fake news” e “pós-verdade” não são mais do que o clássico grito de uma qualquer tia: “Eu nem tou a acreditar!”. O problema é que, nos dias que correm, nem a tia acredita, nem eu. Já ninguém acredita. Diria a tia: “vê-se de tudo!”. E tem razão. Às vezes, a pior verdade acontece mesmo. Não é mentira.
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Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.
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