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Pedro Rolo Duarte

03
Jul11

Da ignorância

Noutros tempos, fazia-se de tudo sem problemas. Nem processos. Nem dramas. Fui editor-geral fundador da revista “Visão”, mas passados dois anos, cansado das guerras semanais para vender mais mil revistas colocando a palavra “sexo” na capa, achei que podia ser útil no marketing – e tornei-me um fornecedor da revista, garantindo todas as ofertas extras, coleccionáveis, revistas comerciais, e as respectivas campanhas de lançamento e manutenção.

Diverti-me muito a aprender o negócio do “livro por mais 2,47 euros” ou o coleccionável que prendia o leitor à revista durante o Verão. Foi numa dessas operações – o “Grande Jogo do Mocho”… - que precisei de criar a figura do próprio jogo: um mocho, obviamente desenhado, figura simpática aos olhos de leitores dos 7 aos 77 anos, cujas características teriam de oscilar entre cartoon e figura marcante de Banda Desenhada clássica.

Não sei como, não me lembro quem sugeriu (não havia Google ainda…), fui parar ao telefone de um homem, Alain Voss, que trabalhava basicamente em publicidade, era um freelancer que desenhava em casa, em Sintra, com a ajuda da mulher, e que cobrava preços, dizia-se, exorbitantes. Além de demorar o seu tempo, até porque entregava tudo pessoalmente.

Se calhar era verdade a exorbitância e o tempo. Mas ele gostou de mim e eu dele – e sabendo que a imprensa não era propriamente um negócio milionário, aceitou trabalhar connosco em regime de saldo e à pressa. Tinha um humor corrosivo e inteligente. Aparecia no meu escritório com um sorriso entre o desconfiado e o tímido. Falava um brasileiro que tinha retoques franceses e calão português. Era uma figura – daquelas a que chamamos, como elogio, e jamais depreciativamente, um “cromo”.

Os anos que se seguiram levaram-me para outros caminhos – não tenho a certeza de ter ainda contado com o Alain Voss no DNA, embora tenha uma vaga ideia de o ver pela redacção do DN… -, e entretanto passaram quinze anos.

Ontem, estava a ler o jornal “i”, e apanho uma matéria de 4 páginas sob o titulo: “Alain Vosso, a fera da BD que seguiu sempre o seu traço”. Na entrada, escrevia-se: “Foi um dos maiores artistas de banda-desenhada de Metal Hurlant (ou bíblia das histórias de quadradinhos) e esteve na origem do grupo brasileiro Os Mutantes. Trabalhou em publicações internacionais e fez campanhas de publicidade para marcas como o Azeite Gallo ou a Nestlé. Morreu em Maio em Portugal”.

Num primeiro momento, pensei: coincidência, um tipo com o mesmo nome daquele louco cheio de talento que desenhou o Mocho e mais uma série de coisas para a Visão. Depois reli a entrada, olhei a fotografia do homem e, oh meu deus!, era o Alain Voss. Li o excelente artigo de Sara Sanz Pinto e reconheci o humor, o lado desconcertante que ele às vezes exibia, e o talento brutal para fazer exactamente o que o cliente lhe pedia – ou o que ele queria, quando não reconhecia ao cliente o saber que ele exigia que se soubesse. O artigo do i, infelizmente sem link no ionline, detalha uma vida rica, um saber superior, e tudo o que explica a capacidade daquele homem desenhar “a pedido”, com técnica, sem deixar de ser criativo.

Fiquei triste com a sua morte. Fiquei conformado por dele me lembrar e por ter feito parte dos que, de passagem, lhe reconheceram talento.

Mas acho que fiquei ainda mais triste por ter passado uma vida inteira na ignorância sobre a vida, a importância e o passado daquele homem extraordinário que se cruzou no meu caminho e eu perdi de vista sem nunca realmente ter sabido quem era.

 

(É nestes momentos que me sinto ignorante. Não é quando reconheço que não consegui ler “Ulisses”, de James Joyce, até ao fim.)

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