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Pedro Rolo Duarte

26
Jan08

Elis Regina

Quando a vida me prega partidas eu oiço-a. Oiço-a dizer «agora, a vida não é mais um rasto indefinido, um agrupamento de pontos, de partículas». A voz tremelicando no começo daquele show gravado pelo irmão numa cassete manhosa, a vida por um fio, o tempo em descontos, e eu arrepiado a mostrar o som roufenho do CD e a exclamar «vê bem onde pode chegar o sentimento, a tristeza e a noção de fim». Quando a vida me sorri e a tranquilidade me ilumina a noite do Alentejo, eu oiço-a cantar «eu quero uma casa no campo / Onde eu possa ficar do tamanho da paz / E tenha somente a certeza / Dos limites do corpo e nada mais».
Oiço-a como se fosse uma crença, como se de uma missa se tratasse, religiosa e dedicadamente, algo em que acredito para lá dos meus sentidos, algo que me ultrapassa e deixo que me ultrapasse sem interrogações maiores do que aquela que a sua voz desencadeia a cada vez que a oiço: como foi possível ser tão verdadeira num mundo tão estupidamente falso?
Oiço-a no Festival de Montreux , deixando que se sinta na voz que o canto se transforma em sorriso, e o sorriso em riso, e sinto como ela terá sentido que a música entra por nós dentro e a seguir é a torrente de energia e paixão que se solta sem controlo, sem medida, porém sem mácula.
Oiço-a num dia de Verão, há anos, e quando alguém me telefona a dizer «nasceu a tua sobrinha Madalena», é dela que me lembro. Telefono para a clínica e, quando a minha irmã atende, disparo o disco: «Até a lua se arrisca num palpite/ que o nosso amor existe / forte ou fraco, alegre ou triste».
Estou a escrever e, claro, estou a ouvi-la. Recebo dela energia, paixão e sensibilidade. Como um daqueles fenómenos da natureza que nos assustam mas ao mesmo tempo fascinam, sou impotente perante esta força, esta massiva dose de fogo e vento. Deixo-me arrastar, «olha o arrastão entrando no mar sem fim», e quero, como ela quis, «um mundo feito sem porta, vidraça», «uma estrada que leve à verdade», «beijar de leve a face da lua».
Quero ouvi-la e saber que está por perto. Aquele sorriso maroto, as mãos meio enfiadas na boca, o olhar tão meigo quanto perspicaz. As «saídas» inesperadas, loucura pura e inocente, um «grito de raiva e de dor» seguido de uma piada fora de tempo. O que eu gosto nela é essa surpresa permanente, a imprevisibilidade, a capacidade de amar sem reservas mas, também, sem a lógica milimétrica das tolas «regras do amor». O que eu gosto nela é tudo o que a voz revela, canção a canção, palavra a palavra, letra a letra, porque muitas vezes ela soma as letras enquanto canta: paixão e entrega. O que escasseia nos universos formatados a que «pertencemos», e que nos tramam a cada esquina mais apertada dos dias.
Oiço-a porque estou bem, porque me falta a paciência, porque estou triste, porque estou optimista, porque quero emigrar, porque sim. Oiço-a sem reservas, como se deve amar quando realmente se ama, e aceito-a como ela é. Submeto-me na exacta medida da capacidade que tenho em compreender a sua estranha forma de estar
... Há vinte anos que penso isto, vivo isto, e dependo disto. Os meus dias não seriam iguais sem esta voz, esta figura, esta personalidade fascinante, este «falso brilhante» que para mim foi sempre mais verdadeiro do que a própria verdade. Um dia, tinha 17 anos, acordei e ouvi na rádio que ela tinha morrido. Não acreditei, porque só acredito no que quero. Não aceitei, porque só aceito o que vem por bem. Não registei, porque nada me obriga a arquivar o que não pode ser arquivado. Até hoje.
... Enquanto eu ouvir Elis Regina, podem dizer o que quiserem. Só não me digam que morreu. Porque eu morro com ela. E, até novas ordens, quero continuar vivo. Com ela por perto.

 
Ao sábado, reedições. De volta à música com uma declaração de amor eterno publicada em 2001, no DNA. Tão actual que podia ter sido escrita hoje.

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