O relatório, as bananas e os macacos
Dei-me ao trabalho de ler as 32 páginas que constituem o “Relatório do Grupo de Trabalho para a definição do conceito de serviço público de comunicação social”.
É no mínimo desanimador verificar que o Governo criou um Grupo de Trabalho formado maioritariamente por pessoas que pouca ou nenhuma relação têm com o universo dos Media, e que nalguns casos têm demonstrado, ao longo dos anos, a sua santíssima ignorância sobre esta área (convém não esquecer os manifestos públicos de Eduardo Cintra Torres, quando vendia antenas parabólicas, contra a televisão por cabo, considerando-a condenada ao fracasso...).
Mas é mais confrangedor e triste verificar que aqueles senhores reuniram semanalmente durante seis meses para chegarem a conclusões que parecem resultar de uma conversa de café, uma espécie de “eles são todos iguais, vamos mas é por ordem naquilo”...
Não há, no documento, argumentos, dados, exemplos, casos de sucesso internacional, que sustentem as ideias apresentadas, a não ser uma obsessão com aquilo a que chamam a “intervenção ilegítima ou eticamente reprovável dos diferentes poderes nos serviços de informação da rádio, TV e agência noticiosa do Estado”. Para acabar com essa intervenção, a sugestão é tão minimalista quanto absurda: acabe-se com a maioria da televisão do estado e reduza-se a informação ao mínimo. Eis o tecto criativo do Grupo de Trabalho: em vez de curarmos a doença, matamos o doente.
Ou seja: em vez de resolver, caso exista e se manifeste, a pretensa intervenção dos poderes nos meios, criando mecanismos legais que a impeçam, limitam-se os meios e está o assunto arrumado.
O relatório tem momentos para rir – como quando se escreve que a solução Televisão Digital Terrestre “irá provavelmente (...) servir apenas uma parte reduzida da população, recorrendo grande parte desta a plataformas pagas para efeitos de acesso a conteúdos televisivos e também radiofónicos”. Confesso que nem na Casa dos Segredos ouvi alguém dizer que paga para ouvir rádio...
O relatório tem momentos para chorar – como quando se defende “que os conteúdos prioritários em língua portuguesa são”, entre outros, “entretenimento criterioso, enriquecedor ou alternativo”. Cheira-me que o Governo vai ter de criar um Grupo de Trabalho para definir o que é “entretenimento criterioso, enriquecedor ou alternativo”...
O relatório tem momentos absurdos – como quando pretende que “os conteúdos noticiosos do operador de serviço público de rádio e televisão sejam concentrados em noticiários curtos, sejam limitados ao essencial e recuperem o carácter verdadeiramente informativo, libertos da crescente dimensão subjectiva e opinativa no jornalismo”. Como se o simples critério de escolha de noticias não fosse já, em si, subjectivo, como se todo o jornalismo pudesse ser “verdadeiramente informativo”. Como se o jornalismo do futuro não radicasse justamente na diversidade de olhares, abordagens, formatos e soluções. Nem um jovem estagiário escreveria esta história da carochinha.
Por fim, o relatório é achincalhante para a classe jornalística que, quer o Grupo de trabalho queira ou não, fez e faz da RTP uma referência de tal forma reconhecida e respeitada pelos espectadores que, nos momentos cruciais – grandes acontecimentos, noites eleitorais, etc. – lhe dá sempre o primeiro lugar nas audiências. O Serviço Público de Televisão tem muitos problemas – que todos eles fossem a informação e o jornalismo praticados, e poderíamos viver felizes.
São apenas alguns exemplos. Aquelas 32 páginas já têm o seu lugar na História da Asneira Nacional – que, como sabemos, é livre, mas podia bem ser poupada pelo Estado. É um lamentável momento da nossa vida democrática e, a ser seguido e aplicado, arrisca-se a ser objecto de estudo nas Universidades, daqui a 100 anos, como um exemplo do atraso português no começo do século XXI.
Não percebo o que andaram aqueles senhores a fazer. Seis meses vezes quatro reuniões mensais e milhares de mensagens electrónicas trocadas (está lá tudo explicado). Uma trabalheira para parir um aborto...
... Mas agora que me dizem que ninguém pagou um cêntimo àqueles senhores, percebo melhor o que li. Como dizem os brasileiros, quem paga em bananas recebe macacos. Deve ter sido isso.