O príncipe encantado existe
(Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman. Já está à venda a deste mês...)
Estava a ler uma crónica da Inês Pedrosa sobre um presumível declínio do casamento, da Ásia à Europa, e de como esse facto pode ser de tal forma desagregador da sociedade que, no limite, poderia conduzir ao aumento da criminalidade porque, citava a escritora um texto da revista The Economist, “o casamento socializa os homens: está associado à diminuição do nível de testosterona e á diminuição dos comportamentos criminais”. Apoiada por uma série de dados estatísticos, e juntando-lhe uma nuvem negra sobre a vida das mulheres, Inês rematou assim: “As mulheres já se habituaram a ser os seus próprios príncipes encantados, voando livremente nos seus cavalos brancos”.
Eu gosto da Inês Pedrosa, de quem já fui amigo, colega, e hoje sou leitor - mas fiquei triste, para não dizer desolado, com esta final “não feliz”. Como se tivesse cinco anos e me dissessem que as crianças, por fim, perceberam à nascença que o Pai Natal não existe. Como se um padre dissesse ao casal, no momento da troca de alianças, “esqueçam lá isso do casamento para a vida, que a estatística é da terra e Deus mora longe”. Como se a escola de magia de Harry Potter não existisse em Hogwarts.
Desanimei, confesso. Uma coisa é sermos sensatos e realistas, vivermos com os pés na terra, termos a capacidade de destrinçar o sonho da realidade. Outra, bem diferente, é abortar o sonho antes mesmo de nascer.
A Inês tem toda a razão do mundo quando nota que o acesso da mulher ao mundo do trabalho não foi acompanhado das mudanças de estatuto que reequilibrariam o universo familiar – e daí, se pensarmos bem, a paridade não ser mais do que um novo desequilíbrio que obriga a mulher a ser super-mulher caso queira cumprir todos os requisitos que lhe recomendam a sociedade. Mas essa circunstância, que é a guerra dos sexos para o século XXI, não pode matar o prazer do sonho: é claro que os príncipes encantados, com cavalo ou de autocarro, somos nós para os outros – não podemos ser nós para nós próprios. Não podemos, Inês!
Há coisa mais triste e desoladora do que descartarmos sumariamente o mistério do que um dia achámos que pode estar ao virar da esquina (ou no Facebook, que parece que fica mais perto...)? Há pior do que conhecer alguém e perder o momento inicial e único daquela primeira noite em que não conseguimos adormecer não pelo que acabámos de conhecer, mas pelo que queremos adivinhar que pode vir a ser quem acabámos de conhecer?
A ideia pirosa da “criança que há dentro de nós” não é mais nem menos do que o prolongamento dos sonhos, das ilusões, dos mistérios e da capacidade de imaginar o que seria a vida se a vida fosse o que a cada momento quiséssemos que fosse. Essa ideia cresce connosco e vai ganhando novas formas, novos contornos, acompanha-nos como uma luz e uma inspiração. Talvez seja mesmo, no fundo, o que nos move. E é tão bom.
Se um dia baixamos os braços e reconhecemos que somos os nossos próprios príncipes encantados, talvez tenhamos chegado ao fim. Tenho a certeza de quem nem a Inês, romântica desde sempre, escorregou nessa armadilha da vida. E por isso, prolongando o sonho para lá da vida, vou rescrever o final daquela crónica da Inês Pedrosa. Vai ficar assim: “as mulheres já se habituaram a serem princesas encantadas, mesmo quando os príncipes se atrasam ou não conseguem estacionar os cavalos brancos em zonas autorizadas pela EMEL”. Pode ser, Inês? Tem realidade dentro, mas mantém o sonho no seu melhor lugar.