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Pedro Rolo Duarte

02
Fev08

Reler

Pelas minhas contas, foi a quarta vez que reli «Até ao Fim», de Vergílio Ferreira. Desta vez tinha um objectivo claro, e «a pedido»: tinha que me pronunciar sobre ele e gostava de ter a obra ainda a pairar sobre mim. Sem esforço, lá voltei aquele volume de capa amarela, que me aproximou do ex-professor do Liceu de Camões, e deixei-me levar pela sua história, pela poesia do escritor, acima de tudo pelas reflexões sobre a vida e a morte que fazem de «Até ao Fim» um tratado sobre esta nossa breve passagem pela face da terra.
Verifiquei depois que, apesar de autodidacta na leitura – com falhas graves de «cultura geral» e excessos de «cultura lateral» ou, segundo os cânones em vigor, irrelevantes... —, tenho uma estranha tendência para voltar aos mesmos livros.

Reler é o quê? Recordar ou redescobrir? Avivar a memória ou confirmar o que julgámos antes? Perder tempo? Boris Vian dizia que «as pessoas só gostam do que já conhecem». O libertino Roger Vailland – um dos meus heróis da juventude – entendia que os leitores dos seus romances «acrescentam um passeante ao quadro do pintor».

Opto por uma ideia alternativa: reler é como voltar, muitos anos depois, a uma casa vagamente conhecida. O que reconhecemos nela? Um ou outro pormenor, uma ideia muito geral, um móvel que nos impressionou, uma solução arquitectónica. Pouco mais do que isso. A dimensão das coisas muda com a idade – o que antes nos parecia enorme pode ser agora, afinal, mínimo. O nosso olhar amadurece, e temos tendência a «deixar cair» alguns dados adquiridos e valorizar detalhes que antes nos passaram «ao lado». O interesse pelo «guião» pode ser substituído pela atenção ao conteúdo, à forma como se desenvolvem os «objectos», as «pessoas», o «espaço», dentro do livro.

Reler não é apenas voltar ao livro – é entrar mais profundamente dentro dele, ganhar a capacidade de o «observar» sem o «feitiço» do enredo, e poder, no limite, descobrir que não passava de uma boa história infelizmente mal contada. Não é isso que sucede com «Até ao Fim», ou «Para Sempre», que resistem a todas as leituras. Não é isso que ocorre quando se volta a Jorge Luís Borges, ou às narrativas de James Ellroy, Paul Auster, Clarice Lispector (felizmente redescoberta em Portugal), ou ainda aos clássicos de, entre tantos, Ernest Hemingway.

Tudo para chegar aqui: vale mais, muitas vezes, reler um livro que julgamos conhecer do principio ao fim, mesmo correndo o risco de não «encontrar» nada mais do que o que nos apaixonou no passado, do que arriscar «novidades» prometidas que, essas sim, acabam no caixote das ideias para esquecer. Um dos livros que escolhi para as minhas férias, «Lixo», de Irvine Welsh, faz jus ao nome e juro que me fez sentir o que menos gostaria quando tenho mais tempo livre: perdê-lo. Queria ter à mão, pela quinta vez, «Até ao Fim». Queria a minha escritora predilecta de noites de Verão, Patrícia Highsmith, queria voltar às «Cinzas de Ângela», que enriqueceram o Inverno que passou. Queria crónicas saborosas de Vasco Pulido Valente, de Miguel Esteves Cardoso, ou aquelas prosas a arder em álcool de P.J. O’Rourke. Queria tudo menos isto. A obsessão de não encher o carro com livros, a que improvavelmente voltaria, atraiçoou-me: custava alguma coisa ter mais dois quilos no porta-bagagens e poder deliciar-me com o que já li – mas sei, previamente, que consegue voltar a encher-me as medidas? Aprendi a lição. Para o ano não será assim.
 
Ao sábado, reedições. Texto originalmente publicado no DN em 1999

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