Sair daqui (ou o livro em branco)
(Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman)
Há dias, num jantar, um casal de sobrinhos de amigos, cursos superiores no bolso e empregos mais ou menos tranquilos, contava animadamente o projecto que o animava: interromper o percurso profissional de sucesso e passar um ano a dar uma volta ao mundo. Tinham feito contas, pretendiam uma viagem “low cost”, orçamentaram a operação de forma a não ultrapassarem o dinheiro que, em três anos, pouparam para cumprir esta vontade. E não o fizeram vivendo em casa dos pais, nada disso – pouparam alugando casa (ou mesmo quarto), não comprando carro, fazendo férias baratas em campismo, não investindo em gadjets da moda, poupando nas noitadas no Bairro Alto.
Dito de forma simples: ao sonharem passar um ano a dar a volta ao Mundo, perceberam que o custo do sonho implicava alguns sacrifícios aparentemente difíceis de suportar aos 24, 25 anos. Tiveram de fazer uma escolha – e fizeram-na.
Quando me contaram o seu projecto estavam a um mês de partir. Este Natal, as famílias de ambos já não contaram com eles à mesa da consoada. Estarão algures na China ou no Brasil ou na Rússia, num percurso que vai constituir uma lição única de vida. Quando voltarem, daqui a um ano, talvez a crise tenha abrandado e recuperem as suas carreiras de sucesso. No limite, voltarão ao lugar de sempre, ou andarão aos papéis até encontrar trabalho. Nada que não pudesse ocorrer se acaso tivessem optado por ficar por cá.
O que me impressionou na tranquilidade com que este jovem casal me apresentou o seu projecto não foi a ideia em si – foi o termo de comparação com a minha geração, que não é assim tão distante, mas que cresceu e foi educada num sentido absolutamente díspar – ou em rigor, disparatado...
Cresci com um modelo de vida que não contemplava paragens de um ano para viajar, nem Erasmus para experimentar, nem o mundo literalmente na palma de mão. Era suposto, há 25 anos, tirar um curso, encontrar trabalho, casar, ter filhos, e depois sonhar com viagens, casas no campo, reformas douradas.
E estava tudo tão errado. O mundo é só um e a vida é só uma – mas ninguém foi capaz de nos explicar isso, e nós não tivemos a capacidade de perceber que a vida não tinha de começar aqui ou ali, a vida é dinâmica e cada um de nós pode construi-la como quer, trabalhando 24 horas por dia para depois poder passar seis meses num barco, adiando a maternidade para poder viver o prazer da descoberta profissional, ou planificando uns anos de vida dura para depois subir os Himalaias...
... A vida, na verdade, é um enorme caminho aberto que podemos mesmo concretizar como queremos. E a crise que atravessamos neste momento é a maior prova deste facto. De que serviu a poupança, ou o sacrifício para o crédito, ou aquele recuo profissional face ao risco? Serviu de nada. Tudo está em aberto – com a desvantagem de não termos no horizonte a sonhada volta ao mundo sem pensar nas consequências.
Tenho votos para 2012? Tenho: que sejamos todos mais livres de viver a vida como ela é – aberta, à nossa frente. Como um livro em branco.