Tristes trastes
A esquerda festiva continua em grande forma: agora, ao mérito da campanha “Zero Desperdício” – uma ideia feliz de um cidadão comum, António Costa Pereira, que não se conformou com o facto de haver comida excedente que vai para o lixo todos os dias em cantinas e restaurantes, enquanto a fome cresce em Portugal -, decidiu responder pegando numa frase menos feliz do hino do Movimento e fazer disso um contra-ataque sob o desígnio da pretensa “caridadezinha”.
A frase da polémica – “denunciada” por José Victor Malheiros e logo seguida por Daniel Oliveira e outros nomes saídos do mesmo forno – diz isto: “O que eu não aproveito ao almoço e ao jantar / A ti deve dar jeito / temos de nos encontrar”.
O verso não é bem-nascido, concordo. Podiam mudar, não lhes ficava mal. Mas uma frase menos feliz no meio de uma canção de força não retira ao Movimento o mérito, o louvor e o apoio activo que merecem. A Campanha é solidária? É. É útil e bem imaginada? Claro que sim. Faz sentido? Faz TODO o sentido.
Tem um pequeno problema: não nasceu nas convenções do Bloco, nos Congressos do PCP nem nas reuniões cheias de independentes do PS. Nem sequer nasceu no PSD ou no CDS. Isso torna tudo mais irritante para quem vive no maniqueísmo absurdo do que é “bom” ou “mau” consoante o lugar onde se senta nos hemiciclos desta vida.
É que este movimento, inteligente e válido, nasceu na Internet em textos como este: “Queremos acabar com o desperdício. Nos tempos que correm, o que há a mais num lado está a faltar noutro. O que nós fazemos é equilibrar os dois lados: ter a certeza que aquela refeição do dia não vai para o lixo e que chega de facto à mesa de alguém”.
É difícil perceber a validade, a oportunidade e a relevância desta ideia?
A esquerda-que-não-ri, e que se queixa de tudo sem alternativas para nada, está a radicalizar o que só merecia carinho. Mas as coisas são como são: com esta gente sempre de dentes de fora, fica difícil distinguir a estrada da beira da beira da estrada. Tristes trastes.