Dá-me música...
(Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman. A de Outubro saiu agora mesmo...)
Antigamente havia sinais óbvios da idade: a calvície, ou os cabelos brancos, as rugas à volta dos olhos e dos lábios, o pescoço e as mãos enrugadas. O discurso paternal - “no meu tempo, sabes lá...” -, marcava a diferença. Os mais velhos distinguiam-se dos novos com argumentos e factos evidentes, claros, inequívocos. E aos sinais exteriores, correspondiam os sinais interiores: ler os clássicos, citar Eça de Queiroz, gostar de música clássica, cultivar o cinema menos comercial. Era assim, e eu gostei que fosse assim.
Mas agora, que me aproximo dos 50 anos e julgava ter chegado a minha hora de dizer “rapaz, sabes lá o que é música...”, confronto-me com a mudança. A idade deixou de ter sinais óbvios – e não foi apenas, nem essencialmente, por razões cirúrgicas. Podemos esticar a pele, retocar o que a lei da gravidade condena, apaziguar as noites mal dormidas. Mas o que o nosso disco rígido guarda, minhas senhoras, esqueçam lá isso: é o que é.
Nesse sentido, sinto que pertenço à última geração dos que achavam que o rock e a música pop tinham um tempo, e esse tempo era o da juventude dos seus protagonistas.
Cresci a imaginar que os Beatles eram um fenómeno geracional e deixaria de fazer sentido quando fosse adulto (e já em bónus, porque os Beatles são realmente do tempo do meu irmão António), e era obvio que os Rolling Stones acabariam quando um deles fosse pai ou sucumbisse a uma overdose. O que me ensinaram foi bastante linear: o rock é uma música própria da miudagem, e quando se chega à idade adulta ouvem-se cantautores (talvez a mais feia designação que jamais ouvi...) e música clássica. No limite, cada geração teria o seu rock, como se fosse um tipo de refrigerante, ou um daqueles gelados da Olá que duram um Verão. O problema é que não foi nada disso que sucedeu.
A miudagem cresceu, os adolescentes dos anos 60 tem agora pelo menos 70 anos, não se inova na música popular, mais coisa menos coisa, desde os Joy Divison, o que significa 30 anos a refazer musica já feita. Há crianças de 5 anos a ouvir Beatles, o meu filho gosta de Rui Veloso, e conheço uma melómana moderna que descobriu Sting há dois meses e hoje não pára de ouvir canções que os Police tocavam em 1982...
Num dos Festivais de Verão deste ano, o homem que atraiu mais gente ao recinto chamava-se Peter Gabriel, tem 62 anos, e a primeira vez que actuou em Portugal ainda eu não tinha autorização dos meus pais para sair à noite, quanto mais para um concerto em Cascais. As gerações cruzaram-se, misturaram-se, e convivem alegremente à volta de todos os tipos e de todas as idades da musica.
Como definir diferenças, se não há quem não goste de Xutos & Pontapés? Como podemos estabelecer patamares de autoridade, se os sobrinhos nos vêem beber cerveja e abanar o corpo no Rock in Rio ao som de Bruce Springsteen?
Não sei se é uma boa notícia, mas é a notícia que tenho para dar: o conflito de gerações entrou em modo “sleep” no que à música diz respeito. Deixámos de ter autoridade moral e somos pouco respeitados.
Por um lado, sempre desejámos esta comunhão e interacção. Por outro, mostramos a cada concerto que somos iguais a eles, aos filhos (e nalguns casos, já aos netos...), no melhor e no pior. Faz lembrar aquele conselho que os esotéricos dão: cuidado com o que deseja, há fortes probabilidades de se tornar realidade. Amámos tanto a musica que a nossa adolescência nos deu, que ela agora contagia os nossos filhos e não sabemos o que fazer.
Ou sabemos. Eu sei: é ouvir, dançar, e querer mais.