Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Pedro Rolo Duarte

26
Abr14

40 anos de sonho e realidade

(Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman. A edição de Maio já anda aí nas bancas, linda como sempre...)

Há coincidências  terríveis: no ano em que assinalamos quatro décadas sobre a revolução de 25 de Abril, os debates que abriram este estranho e ainda imperscrutável 2014 recaíram sobre a co-adopção por casais homossexuais e sobre as animalescas praxes académicas. Como se o Universo nos quisesse abrir os olhos e dizer: queridos portugueses, vocês mudaram bem menos do que o país onde vivem. E como é isto possível?
Como é possível que, 40 anos depois, tenhamos um país moderno na aparência, radicalmente diferente do cinzento Portugal do regime anterior, mas tristemente povoado por uma maioria que, na essência, não mudou quase nada em si?
As imagens não mentem: Portugal é outro país neste começo do século XXI. A rede de comunicações é excelente e aproximou cidades, interior e litoral, norte e sul; o consumo e o comércio tornou-nos cosmopolitas, iguais entre iguais numa Europa que sempre foi distante; acompanhámos as mudanças dos outros países na facilidade em viajar, na forma como adoptámos a ideia de moda, até na linguagem. Evoluiu a imprensa, a rádio, a televisão, e aderimos facilmente a tudo o que é novo, do telemóvel à internet. Fomos até capazes de inovar, como a Via Verde comprova. Mas…
… Mas, por outro lado, há 27 mil queixas de violência doméstica por ano, e em 2013 foram mortas, nestas circunstancias, 33 mulheres. E há partidos políticos que aceitaram o casamento entre pessoas do mesmo sexo mas impedem que as crianças adoptadas por um de dois homossexuais sejam co-adoptadas pelo casal. E continua a cuspir-se para o chão como se fosse óbvio. E as ruas das cidades continuam a ser depósito a céu aberto das fezes dos animais. E quando há inquéritos de rua, ninguém sabe dizer mais do que “os políticos são todos iguais”, ou as lamurias do costume ditas de forma que nem os Gato Fedorento ousariam imaginar. Nem preciso de falar nos reality-shows.
O esquema baixo, a pequena corrupção, o jeitinho persistem em dominar a nossa forma de estar no Mundo - dizem que somos especialistas no desenrasca mas essa característica, até prova em contrário, não constitui qualidade. E até as revelações que resultaram do debate sobre as praxes académicas exibem traços ordinários, rasteiros, primários, de uma educação familiar e escolar que esperávamos fosse diferente nesta fase da evolução da raça. Nada disso - iguais a homens de uma qualquer pré-história.
Resultado: evoluimos na aparência, mas não mudámos quase nada na essência. Mais de um século depois, Eça de Queiroz continua a ter razão: "A agricultura aqui é a arte de assistir impassível ao trabalho da natureza”. Quem diz a agricultura, diz praticamente tudo. É a nossa forma de ser o que somos: acreditar na sorte, no desenrascanço de ultima hora, na pena suspensa, no gong que nos salva no ultimo momento.
É verdade que há uma geração nova que empreende e quer mudar - e boa parte dela, felizmente, vai conseguindo. Mas vive num movimento de contracorrente, sempre contrariada pela falta de incentivo, pelo imobilismo do estado (que só sabe modernizar-se para cobrar impostos ou controlar as vidas alheias), pelo mais carregado sistema de impostos de que tenho memória, e por esta “estranha forma de vida” que acredita seriamente que se deve mudar qualquer coisa para que tudo fique na mesma.
Vamos festejar quatro décadas de democracia e é uma efeméride digna de ser assinalada. A liberdade é um valor supremo e, ainda que com as limitações que sabemos, na verdade podemos dar graças ao facto de sermos livre. Mas há uma outra verdade, menos coloridas e igualmente marcante, que tristemente assinalamos também: tivemos 40 anos para nos tornarmos muito melhores. Mas faltou-nos o querer - e somos mais iguais do que parecemos.
Acredito que, nos próximos quarenta, os nossos filhos vão tornar realidade o que nestas décadas ainda ficou no lugar do sonho.

Blog da semana

Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.

Uma boa frase

Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Mais comentários e ideias

pedro.roloduarte@sapo.pt

Seguir

Arquivo

  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2016
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2015
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2014
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2013
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2012
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2011
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2010
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2009
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2008
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2007
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D