Acordar, mas sem acordo
Não estou de acordo com o acordo porque não quero um dia acordar acordado.
Quero continuar com letras a mais, porque gosto de ter letras de sobra e não me faz qualquer confusão que os brasileiros, no seu clima tropical, queiram dizer palavras com pouca roupa, perdão, com poucas letras. Mas receio constipações e pneumonias nos factos e nas acções despidas daquele “c” – porque aqui “faz frio” no Inverno e raramente “está esfriando”. Deixemos ao Brasil o domínio do despir, e mantenhamos a roupa à mão deste lado do mar.
Gosto de ler “brasileiro”, gosto daquela riqueza imagética, gosto de ler a Mónica e perceber que o português dela anda em “sacanagem” descarada com o de lá. Um prazer ler a “Veja” e sentir aquela língua. Na maneira, no modo, e obviamente na ortografia que nos obriga a modular a leitura. Concordo absolutamente com o Pedro Mexia:
“Aquilo que francamente me desagrada é o critério fonético. Se isto é um acordo ortográfico, que apenas modifica a língua escrita, não me parece sensato que a ortografia siga sempre o critério do português falado. (...) A língua falada é a que utilizamos todos os dias, (...) Mas a língua, enquanto legado, vive nos textos, e acima de tudo na grande literatura. (...) É o português escrito que dá identidade à língua portuguesa. Alterar o modo como escrevemos a partir do modo como falamos é uma ideia muito discutível”.
A questão cultural diz-me pouco, porque muito mais me diz a riqueza que a diferença encerra do que o pobreza adivinhada pela uniformização. Lá está, roupa outra vez: uniforme, não. Ou em português de Lisboa, farda nem pensar.
Dito isto, a vida ensinou-me que depois dos 40 podem fazer tudo, que eu já faço pouco disso: continuo a pensar em contos e não em euros. Continuarei a escrever factos e a vestir fatos. Aliás, eu escrevo “ía”, do verbo ir, e parece que já não é assim.
Eu não acordo com o acordo – eu acordo com quem quero e gosto. Faço por isso – é um facto com “c”.