Heróis sem idade
Houve em dia em que deixei definitivamente de ler histórias «de quadrinhos» (assim se dizia, então, dado que eram todas importadas do Brasil) com a marca Walt Disney. Estava a entrar na adolescência e o espaço, nos armários do meu quarto, escasseava para as novas leituras – que misturavam Enid Blyton dos «cinco» e dos «sete» e alguma literatura política muito romanceada, para não cansar. Decidi, portanto, desfazer-me de uns quilos de papel a troco de poucas notas de mil, que rapidamente se esfumaram nos cafés e papelarias das redondezas.
Tinha acabado um tempo que não voltaria mais. Isso era o que eu julgava, claro – porque muitos anos mais tarde, quer dizer, agora, vejo-me subitamente de regresso ao convívio com o rato Mickey, a Minnie, o Pateta e mais uns tantos velhos conhecidos. A primeira lição estava completa: nunca se deve dizer que acaba um tempo quando não se sabe o que o futuro nos reserva. E quando o futuro nos reserva um filho, é mais ou menos seguro que nos aguardam outra vez as mesmas personagens, agora acompanhadas de Pokemons, Digimons e do renascido Winnie the Pooh (na foto, ao lado do meu filho, em Maio de 2001, arredores de Paris...). Revejo as revistas e os livros, e o mundo não mudou desde há 25 anos: o Tio Patinhas continua rico e forreta, o Cascão persiste na sua aversão à higiene, o Pateta ainda tropeça nos próprios pés, os sobrinhos do Pato Donald não se cansam de fazer tropelias, e até o amendoim que dava super-poderes ao Pateta se mantém intacto nas suas propriedades, em tudo semelhantes à poção mágica dos gauleses.
Passaram os anos sobre mim, mas não sobre estes simpáticos bonecos. Não sei se essa resistência ao envelhecimento é boa ou má. Por um lado, devolve-nos a infância – por outro, faz-nos pensar que há um mundo real feito de anos a passar e cansaço, impaciência, mau-feitio; e ao nosso lado há profissionais cuja missão é preservar um outro mundo, imune às características humanas, insensível ao passar do tempo.
O que seria destes personagens se nos acompanhassem efectivamente ao longo da vida? O Rato Mickey teria hoje, na realidade, 73 anos – seria certamente um rato reformado, rezingão, nostálgico, se calhar viúvo da Minnie. O Mickey de bengala, impedido pelo médico de comer as tortas da avó por causa da diabetes, a reclamar de uma pensão que não dava para mais do que o aluguer de uma toca manhosa no Bronx de Nova Iorque... Na caixa-forte do Tio Patinhas, entretanto falecido, andaria um Pato Donald com 67 anos, herdeiro da fortuna do velho sovina, cerceado pelos fiscais dos impostos. Os sobrinhos Huguinho, Zezinho e Luizinho deveriam ser hoje gestores de topo no império Patinhas e esforçados trabalhadores cujas malandrices se aplicariam apenas à forma de gerir os trabalhadores...
Na galeria dos restantes personagens da minha infância, o panorama era desolador: com 41 anos, Astérix ainda teria paciência para aturar romanos? E que dizer de Tintin, com 72 anos, que aventura poderia viver para lá de uma ida mensal à caixa de pensões lá do bairro? Sobre o efeito do espinafre num Poppey que teria hoje mais de 70 anos, é melhor não falar, porque a ciência ainda pode descobrir propriedades notáveis no legume preferido do marinheiro. Já o clássico Snoopy, cão de 50 anos de idade, teria o pelo todo branco, e não era improvável que se fizesse acompanhar de uma bengala para o auxiliar nos momentos em que não está a reflectir sobre a vida...
Na verdade, se os heróis da nossa infância envelhecessem, como as pessoas, tornar-se-iam iguais a nós. Deixariam de interessar aos mais novos, e não seriam bons amigos dos mais velhos. Ganhavam em humanidade o que perdiam no segredo do seu sucesso: energia, juventude, humor, graça, espírito de aventura. Andariam ao nosso lado, num mundo bem menos colorido e divertido, mas estariam sozinhos entre multidões. Não teriam graça nenhuma. E era improvável que eu voltasse a olhar para eles, ainda que o faça agora através dos olhos de uma criança de cinco anos. Não há dúvida: «na terra dos sonhos» vive-se melhor. Deixemo-los sossegados.