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Pedro Rolo Duarte

10
Mai08

Heróis sem idade

Houve em dia em que deixei definitivamente de ler histórias «de quadrinhos» (assim se dizia, então, dado que eram todas importadas do Brasil) com a marca Walt Disney. Estava a entrar na adolescência e o espaço, nos armários do meu quarto, escasseava para as novas leituras – que misturavam Enid Blyton dos «cinco» e dos «sete» e alguma literatura política muito romanceada, para não cansar. Decidi, portanto, desfazer-me de uns quilos de papel a troco de poucas notas de mil, que rapidamente se esfumaram nos cafés e papelarias das redondezas.

Tinha acabado um tempo que não voltaria mais. Isso era o que eu julgava, claro – porque muitos anos mais tarde, quer dizer, agora, vejo-me subitamente de regresso ao convívio com o rato Mickey, a Minnie, o Pateta e mais uns tantos velhos conhecidos. A primeira lição estava completa: nunca se deve dizer que acaba um tempo quando não se sabe o que o futuro nos reserva. E quando o futuro nos reserva um filho, é mais ou menos seguro que nos aguardam outra vez as mesmas personagens, agora acompanhadas de Pokemons, Digimons e do renascido Winnie the Pooh (na foto, ao lado do meu filho, em Maio de 2001, arredores de Paris...). Revejo as revistas e os livros, e o mundo não mudou desde há 25 anos: o Tio Patinhas continua rico e forreta, o Cascão persiste na sua aversão à higiene, o Pateta ainda tropeça nos próprios pés, os sobrinhos do Pato Donald não se cansam de fazer tropelias, e até o amendoim que dava super-poderes ao Pateta se mantém intacto nas suas propriedades, em tudo semelhantes à poção mágica dos gauleses.

Passaram os anos sobre mim, mas não sobre estes simpáticos bonecos. Não sei se essa resistência ao envelhecimento é boa ou má. Por um lado, devolve-nos a infância – por outro, faz-nos pensar que há um mundo real feito de anos a passar e cansaço, impaciência, mau-feitio; e ao nosso lado há profissionais cuja missão é preservar um outro mundo, imune às características humanas, insensível ao passar do tempo.

O que seria destes personagens se nos acompanhassem efectivamente ao longo da vida? O Rato Mickey teria hoje, na realidade, 73 anos – seria certamente um rato reformado, rezingão, nostálgico, se calhar viúvo da Minnie. O Mickey de bengala, impedido pelo médico de comer as tortas da avó por causa da diabetes, a reclamar de uma pensão que não dava para mais do que o aluguer de uma toca manhosa no Bronx de Nova Iorque... Na caixa-forte do Tio Patinhas, entretanto falecido, andaria um Pato Donald com 67 anos, herdeiro da fortuna do velho sovina, cerceado pelos fiscais dos impostos. Os sobrinhos Huguinho, Zezinho e Luizinho deveriam ser hoje gestores de topo no império Patinhas e esforçados trabalhadores cujas malandrices se aplicariam apenas à forma de gerir os trabalhadores...

Na galeria dos restantes personagens da minha infância, o panorama era desolador: com 41 anos, Astérix ainda teria paciência para aturar romanos? E que dizer de Tintin, com 72 anos, que aventura poderia viver para lá de uma ida mensal à caixa de pensões lá do bairro? Sobre o efeito do espinafre num Poppey que teria hoje mais de 70 anos, é melhor não falar, porque a ciência ainda pode descobrir propriedades notáveis no legume preferido do marinheiro. Já o clássico Snoopy, cão de 50 anos de idade, teria o pelo todo branco, e não era improvável que se fizesse acompanhar de uma bengala para o auxiliar nos momentos em que não está a reflectir sobre a vida...

Na verdade, se os heróis da nossa infância envelhecessem, como as pessoas, tornar-se-iam iguais a nós. Deixariam de interessar aos mais novos, e não seriam bons amigos dos mais velhos. Ganhavam em humanidade o que perdiam no segredo do seu sucesso: energia, juventude, humor, graça, espírito de aventura. Andariam ao nosso lado, num mundo bem menos colorido e divertido, mas estariam sozinhos entre multidões. Não teriam graça nenhuma. E era improvável que eu voltasse a olhar para eles, ainda que o faça agora através dos olhos de uma criança de cinco anos. Não há dúvida: «na terra dos sonhos» vive-se melhor. Deixemo-los sossegados.

 
Ao sábado, reedições. Texto originalmente publicado em Junho de 2001, no DNA/Diário de Notícias

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