Há 15 anos, os portugueses que faziam férias na praia tinham destinos bem definidos: o Algarve e alguns pontos da costa ocidental, de São Martinho à Praia das Maçãs, da Póvoa de Varzim a Vila Nova de Mil Fontes. Nessa altura, só meia-duzia de «excêntricos» procurava praias alternativas, menos conhecidas, em geral sem apoios, e com acessos duvidosos.
Estava longe a moda dos jipes e dos desportos de mar. Foi mais ou menos nesse tempo que, farto do Algarve e incapaz de mergulhar no mar da Praia Grande sem me lembrar do meu pai a «sentar-se» nas ondas, fui à procura de novo poiso. Desci a Costa Alentejana, «aportando», época a época, em Porto Covo, Vila Nova de Mil Fontes, Almograve, até estacionar na Zambujeira-do-Mar. Ou melhor, até descobrir a Praia do Carvalhal.
Nessa altura, o Carvalhal era frequentado por umas dezenas de famílias e chegava-se lá por um caminho de terra que não era do agrado dos automóveis «normais». Mas valia a pena o esforço: além do areal extenso – não em largura, que a praia é «amparada» por duas arribas e não tem mais de 150 metros de largo, mas em comprimento -, o mar era acolhedor, o vento raras vezes incomodava quem escolhia os «cantos» da praia para estender a toalha, o ribeiro que ali desaguava era ladeado por campo verde e florido, e havia paz. Estranhamente, os frequentadores daquela praia não falavam aos gritos, não vinham acompanhados de rádios, e só muito raramente se via algum grupo a jogar à bola. O paraíso? Praticamente.
Foi nessa praia que o Miguel e a Maria da Luz também «aportaram». Ambos ex-trabalhadores da aviação, ambos com muito mundo visto e revisto. Fartos das vidas de aeroporto, decidiram voltar à terra. No Brasil e noutros países que cultivam a vida de praia, o Miguel e a Luz tinham visto os mais deslumbrantes bares e decidiram construir um desses apoios ali mesmo, no Carvalhal, onde nada havia a não ser «potencial». Nasceu assim o «Oceano», nome que ninguém usava porque, para nós, aquela casa de madeira escura encostada à duna chamava-se simplesmente «A Luz».
«A Luz» tinha gosto e cuidado no seu espaço: não havia cadeiras de plástico nem chapéus de sol «patrocinados» pela «Olá» - havia cadeira de madeira, «à realizador», todas iguais, chapéus de sol de madeira pintados à mão, o telhado revestido a uma espécie de colmo, e do balcão viam-se as «obras de arte» que a Luz criava diariamente. As obras eram cestos de fruta cheia de cores, flores, as cestas do pão primorosamente alinhado em fatias sobre panos brancos, enormes recipientes cheios de salada de frutas. Do seu «tijolo» saiam as canções de Sade e Cesária Évora, de Tom Jobim e Simone, de Caetano e Youssou N’Dor, nunca demasiado alto, nunca excessivamente baixo. Um prazer, em resumo, para fins de tarde que se tornaram intermináveis, entre uma caipirinha feita com mel e um sumo de meloa genial, ou um chá gelado que arrumava o calor num canto.
«A Luz» era um bar exemplar, porque os seus donos eram exemplares: a troco de nada cuidavam da limpeza da praia, negociavam com as autoridades a presença do nadador-salvador e garantiam-lhe comida e dormida, e preservavam aquele espaço de uma degradação que, com o passar dos anos e o aumento de veraneantes, seria inevitável.
Sucede que o Miguel é um homem incapaz de ver o mundo à sua volta ruir sem fazer qualquer coisa para o evitar. É um lutador. Nessa qualidade, e porque o bar da praia trouxe para aquela zona clientes que procuram qualidade, paz, harmonia, conservação, bom gosto, desenvolvimento cuidado e «sustentado», tornou-se um defensor da região. Para o bem e para o mal, denunciava atropelos à lei e ao senso, participava nos fóruns de discussão e questionava as medidas cuja razoabilidade lhe parecia inexistente, não se calava por nada. Conseguiu notícias de jornal, contestou, lutou. Ganhou muitos inimigos de estimação.
Não espanta, portanto, que há um ano, quando o ordenamento da costa avançava para Sul e arrasava dezenas de verdadeiras tascas imundas que emporcalhavam as praias, ele fosse «a próxima vítima». Embora o seu bar fosse, a todos os títulos, exemplar, a lei «igual para todos» deitou-o abaixo. É certo que deixou dezenas de bares de pé – mas o dele foi mesmo a eito, quase sem aviso prévio.
O que se seguiu a este acto suspeito nem vale a pena contar – talvez a justiça um dia consiga pelo menos fazer-se valer -, mas vale a pena ver o resultado prático desta operação de limpeza. Um ano depois, volto ao Carvalhal e o que vejo: uma praia suja com meia-dúzia de caixotes de lixo a transbordar porcaria e moscas, um nadador-salvador só para resolver o mês de Agosto – em Julho e Setembro morre-se à vontade no Carvalhal – e uma roloutte entalada por umas redes mal amanhadas e uns paus de madeira, cercada de chapéus-de-sol publicitários e cadeiras de plástico, a servir bebidas e sandes como se fosse dia de futebol. Pior: autorizada pela autarquia.
Numa declaração à imprensa, um responsável político local disse que o antigo bar era óptimo, mas agora, para desenrascar, «esta era a solução possível». Em vez do «Oceano» de madeira, uma rolloute emoldurada pelo plástico e as logótipos comerciais. Em vez da qualidade, a clássica sandes. Em vez de integração no espaço, a degradação final. A lei do desenrasca numa presumível maldadezinha sem pai nem mãe. Somos assim? Somos.
Digam-me lá se isto não é uma história portuguesa, de Portugal, igual à que todos nós infelizmente contamos quando falamos do estado a que chegámos. E de onde nunca mais saímos.
Ao sábado, reedições. Texto originalmente publicado no Diário de Notícias / DNA em Setembro de 2002.
Update: depois da roullotte improvisada veio um bar em madeira plantado no meio do pó do caminho, igualmente sem estilo, sem história, com gelados de pacote, sacos da matutano, bebidas de cápsula e as “sandes” do costume. E veio um Parque de Campismo a menos de 500 metros da arriba, um enorme parque de estacionamento cheio de placas, e uma ponte em cimento. A praia do Carvalhal perdeu todo o seu encanto. A maioria dos seus banhistas habituais desapareceu. Está entregue aos que deram cabo dela. Sempre que por ali passo, o que é cada vez mais raro, sinto um aperto no coração.
Olá Pedro! Lembro-me de ter lido este seu texto precisamente em 2002, altura em que comprava assiduamente o «diário de notícias» ao sábado, e ter ficado chocado com a heresia, até porque da minha estada na Zambujeira do Mar pelo ano de 1998 para ver os famosos concertos da herdade da casa branca, ficou na minha memória mais prazenteira, a praia do Carvalhal e o tal barzinho de que fala. Tenho que concordar hoje consigo, tal como concordei em 2002. Esta é uma história à portuguesa, concerteza... Abraço
Também me recordo de ler este texto no DN . felizmente ainda conheci este outro carvalhal. o festival sudoeste me levou até ele em 97. Fiquei apaixonado pela zona que a partir desse ano nunca mais larguei. Já teve melhores dias. Que saudades das sandes de atum e dos sumos de manga ! o sudoeste me deu, o sudoeste me tirou.
Fado não é, como diria alguém que eu conheço "puxanos o olho à remela"... há tantos Carvalhais por aí... eu que vou para a Ericeira desde que me encontrava na barriga da minha mãe posso dizer-lhe que por ali tb se deram ao "prazer" de estragar a terra; há quem não perceba a diferença entre qualidade de vida e piroseira.
Não sei como era a praia antes de 2006, ano em que fiquei a conhecer a zona de Vila Nova de Mil fontes e consequentemente a do Carvalhal. Talvez por não conhecer melhor, aquela tivesse-me parecido uma típica praia portuguesa, tal e como foi aqui descrita (no após)... Infelizmente, tem-se a mania do aparentemente correcto, das leis e dos imperativos modernos criados para uma sociedade de consumo. Somos uns brutamontes, sem capacidade de raciocínio, levados por ideias postas em papel, que assim como o comunismo só ficam bem na teoria sem necessidade de serem levadas a pratica. Mas como este caso da praia do Carvalhal temos inúmeras outras situações espalhadas por Portugal. Resta-nos apoiar não só iniciativas para repor o equilíbrio, mas também pra alertar tamanha insensatez.
...para nós, era a praia dos sumos! Tudo tão a meu gosto e tão único!
E também dizíamos que a praia tinha alcatifa. Lembra-se? Antes de fazerem o medonho parque de estacionamento, quando começava a areia tinha uma vasta área com relva macia que fazia as delícias dos miúdos.
Agora já não me apetece lá ir, não.
Destruiram aquele cantinho...
Mas o Miguel e a Luz hoje, dão luz noutro cantinho, também muito agradável... Sabe onde é?
Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.
Uma boa frase
Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira
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