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Pedro Rolo Duarte

17
Mai08

Uma história portuguesa

Há 15 anos, os portugueses que faziam férias na praia tinham destinos bem definidos: o Algarve e alguns pontos da costa ocidental, de São Martinho à Praia das Maçãs, da Póvoa de Varzim a Vila Nova de Mil Fontes. Nessa altura, só meia-duzia de «excêntricos» procurava praias alternativas, menos conhecidas, em geral sem apoios, e com acessos duvidosos.
Estava longe a moda dos jipes e dos desportos de mar. Foi mais ou menos nesse tempo que, farto do Algarve e incapaz de mergulhar no mar da Praia Grande sem me lembrar do meu pai a «sentar-se» nas ondas, fui à procura de novo poiso. Desci a Costa Alentejana, «aportando», época a época, em Porto Covo, Vila Nova de Mil Fontes, Almograve, até estacionar na Zambujeira-do-Mar. Ou melhor, até descobrir a Praia do Carvalhal.
Nessa altura, o Carvalhal era frequentado por umas dezenas de famílias e chegava-se lá por um caminho de terra que não era do agrado dos automóveis «normais». Mas valia a pena o esforço: além do areal extenso – não em largura, que a praia é «amparada» por duas arribas e não tem mais de 150 metros de largo, mas em comprimento -, o mar era acolhedor, o vento raras vezes incomodava quem escolhia os «cantos» da praia para estender a toalha, o ribeiro que ali desaguava era ladeado por campo verde e florido, e havia paz. Estranhamente, os frequentadores daquela praia não falavam aos gritos, não vinham acompanhados de rádios, e só muito raramente se via algum grupo a jogar à bola. O paraíso? Praticamente.
Foi nessa praia que o Miguel e a Maria da Luz também «aportaram». Ambos ex-trabalhadores da aviação, ambos com muito mundo visto e revisto. Fartos das vidas de aeroporto, decidiram voltar à terra. No Brasil e noutros países que cultivam a vida de praia, o Miguel e a Luz tinham visto os mais deslumbrantes bares e decidiram construir um desses apoios ali mesmo, no Carvalhal, onde nada havia a não ser «potencial». Nasceu assim o «Oceano», nome que ninguém usava porque, para nós, aquela casa de madeira escura encostada à duna chamava-se simplesmente «A Luz».
«A Luz» tinha gosto e cuidado no seu espaço: não havia cadeiras de plástico nem chapéus de sol «patrocinados» pela «Olá» - havia cadeira de madeira, «à realizador», todas iguais, chapéus de sol de madeira pintados à mão, o telhado revestido a uma espécie de colmo, e do balcão viam-se as «obras de arte» que a Luz criava diariamente. As obras eram cestos de fruta cheia de cores, flores, as cestas do pão primorosamente alinhado em fatias sobre panos brancos, enormes recipientes cheios de salada de frutas. Do seu «tijolo» saiam as canções de Sade e Cesária Évora, de Tom Jobim e Simone, de Caetano e Youssou N’Dor, nunca demasiado alto, nunca excessivamente baixo. Um prazer, em resumo, para fins de tarde que se tornaram intermináveis, entre uma caipirinha feita com mel e um sumo de meloa genial, ou um chá gelado que arrumava o calor num canto.
«A Luz» era um bar exemplar, porque os seus donos eram exemplares: a troco de nada cuidavam da limpeza da praia, negociavam com as autoridades a presença do nadador-salvador e garantiam-lhe comida e dormida, e preservavam aquele espaço de uma degradação que, com o passar dos anos e o aumento de veraneantes, seria inevitável.

Sucede que o Miguel é um homem incapaz de ver o mundo à sua volta ruir sem fazer qualquer coisa para o evitar. É um lutador. Nessa qualidade, e porque o bar da praia trouxe para aquela zona clientes que procuram qualidade, paz, harmonia, conservação, bom gosto, desenvolvimento cuidado e «sustentado», tornou-se um defensor da região. Para o bem e para o mal, denunciava atropelos à lei e ao senso, participava nos fóruns de discussão e questionava as medidas cuja razoabilidade lhe parecia inexistente, não se calava por nada. Conseguiu notícias de jornal, contestou, lutou. Ganhou muitos inimigos de estimação.

Não espanta, portanto, que há um ano, quando o ordenamento da costa avançava para Sul e arrasava dezenas de verdadeiras tascas imundas que emporcalhavam as praias, ele fosse «a próxima vítima». Embora o seu bar fosse, a todos os títulos, exemplar, a lei «igual para todos» deitou-o abaixo. É certo que deixou dezenas de bares de pé – mas o dele foi mesmo a eito, quase sem aviso prévio.

O que se seguiu a este acto suspeito nem vale a pena contar – talvez a justiça um dia consiga pelo menos fazer-se valer -, mas vale a pena ver o resultado prático desta operação de limpeza. Um ano depois, volto ao Carvalhal e o que vejo: uma praia suja com meia-dúzia de caixotes de lixo a transbordar porcaria e moscas, um nadador-salvador só para resolver o mês de Agosto – em Julho e Setembro morre-se à vontade no Carvalhal – e uma roloutte entalada por umas redes mal amanhadas e uns paus de madeira, cercada de chapéus-de-sol publicitários e cadeiras de plástico, a servir bebidas e sandes como se fosse dia de futebol. Pior: autorizada pela autarquia.

Numa declaração à imprensa, um responsável político local disse que o antigo bar era óptimo, mas agora, para desenrascar, «esta era a solução possível». Em vez do «Oceano» de madeira, uma rolloute emoldurada pelo plástico e as logótipos comerciais. Em vez da qualidade, a clássica sandes. Em vez de integração no espaço, a degradação final. A lei do desenrasca numa presumível maldadezinha sem pai nem mãe. Somos assim? Somos.

Digam-me lá se isto não é uma história portuguesa, de Portugal, igual à que todos nós infelizmente contamos quando falamos do estado a que chegámos. E de onde nunca mais saímos.

 
Ao sábado, reedições. Texto originalmente publicado no Diário de Notícias / DNA em Setembro de 2002.
 
Update: depois da roullotte improvisada veio um bar em madeira plantado no meio do pó do caminho, igualmente sem estilo, sem história, com gelados de pacote, sacos da matutano, bebidas de cápsula e as “sandes” do costume. E veio um Parque de Campismo a menos de 500 metros da arriba, um enorme parque de estacionamento cheio de placas, e uma ponte em cimento. A praia do Carvalhal perdeu todo o seu encanto. A maioria dos seus banhistas habituais desapareceu. Está entregue aos que deram cabo dela. Sempre que por ali passo, o que é cada vez mais raro, sinto um aperto no coração.

 

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