O saber do pão, o sabor do pão
“Basta referir-me ao pão. Vidigueira? Torrão? Bons pães, não duvido; mas como milhares de outros. Depois do peixe e do Diogo Rosado, a maior riqueza de Portugal é o pão. Custa-me que a magnificência da panificação portuguesa seja tão pouco laureada. O pão de Pernes, conhecem? Não faz mal, é tão bom como o de Martim Longo ou de Beja ou, ou, ou, ou. Os portugueses parecem-me tão competentes a fazer pão que até o "Pão Alentejano" da Casa Xandite da Costa da Caparica consegue ser estupendamente aceitável. Sempre me fez espécie” – encontro isto no blog de Maradona e risco mais uma linha da Filofax na secção “temas para posts”. Era o pão, claro. Era o regresso do pão a Lisboa.
Não sei se deram conta, mas o pão – o preferido de todos os alimentos que amo – sofreu o seu bocado nos anos 80 e 90, com as máquinas industriais nas padarias, a degradação da “carcaça”, e o inacabado debate sobre o “que faz mal” e o “que faz bem”. Parecia “bem” não comer pão – no que terá sido a mais estapafúrdia regra não escrita da sociedadezinha lisboeta. Lembrava-me sempre do meu pai a virar o bico dos olhos dos empregados dos restaurantes chineses, perguntando alegremente: “e pãozinho, não se arranja?”.
Por fim mudou o século, e com a mudança (coincidência, certamente), além das “Casinhas do Pão”, que já havia antes, e de uma padaria ali na Pascoal de Melo, cujo nome não me ocorre agora, e da Madrilena na Av. de Madrid - dizia eu, além desses oásis, os outros comerciantes perceberam que os lisboetas gostavam de voltar a ter pão como deve ser. Da Encarnação de Mafra. Das Pereiras de Monchique. De Azeitão. De Sesimbra. De longe. Ou de perto. Mas bom. Aos poucos, os supermercados começaram a abrir espaço para o pão “importado” de fora de Lisboa – e a coisa democratizou-se rapidamente, até mesmo nas padarias clássicas, que em muitos casos se converteram à diversidade. Não é só no Corte Inglês que há pão português outra vez, é no Pingo Doce, e no Continente, e no Modelo, e em quase todo o lado. Alguns restaurantes mais inteligentes também já tratam o pão com a delicadeza e a atenção que dedicam à fruta, separando o trigo do joio. Literalmente.
Na verdade, eu ainda continuo a duvidar das entregas e dos stocks (quando fui a Beja, há poucas semanas, não voltei para Lisboa sem antes comprar dois pães de quilo que me pareceram, e eram, legítimos...). Pareço o maluquinho do pão, sempre em excesso, sempre a transbordar, e sempre a dizer: “tenho de comprar pão...”.
Mas o pior não é isso. O pior é que nunca mais encontrei pão tão bom como aquele que me alimentou parte da vida durante quase 20 anos, directamente da única padaria da Zambujeira do Mar. Pão que cheguei a ter de reservar, porque “no Inverno acaba, que somos poucos”, e “no Verão acaba, que somos muitos”. Palavra da padeira. À porta daquela casa rasteira onde só a enorme chaminé antecipa o melhor, está quase sempre um carro de mão com lenha. E aquela imagem da porta castanha e do carro com a lenha parece que derrete manteiga...
Quem conhece a terra sabe do que falo – mas saberá também que os próprios locais compram pão das Pereiras e de outras localidades. Não é unânime a qualidade do pão da Zambujeira. Mas para mim é. O pão. O pão. O pão. Com manteiga. Sanduíche. Para açorda. Para torradas. Ao acordar. Antes de dormir. A qualquer hora.
O Maradona lixou-me o post e a noite. Umas fatias de pão de Mafra, está bem, mas não é a mesma coisa. Até o queijo perde sabor. É do que sinto mais falta quando penso na falta que me faz aquele bocado do meu passado.