E se elas não quiserem?
Ao fim-de-semana, reedições. Nos dias do Congresso Feminista, recupero uma crónica que publiquei na revista Visão em Janeiro de 1999. O tema era outro – ou é sempre o mesmo? Vejamos:
Pergunto se já alguém colocou a questão mais básica de todas: e se as mulheres não tiverem o mais pequeno interesse pela política? Ou, de outra forma: e se, para as mulheres, o poder não passar pela política pura, mas por outras áreas, outros interesses?
Estas perguntas não me saem da cabeça desde que começou a discussão sobre a presumível obrigatoriedade de ter uma percentagem razoável de mulheres no Parlamento e, em geral, nos lugares de decisão política. Vi na televisão um pequeno debate entre Maria José Nogueira Pinto e Edite Estrela – duas excelentes políticas com gosto pela actividade – e estranhei que não houvesse referência a esta possibilidade.
Transfiro a questão para a profissão que desenvolvo, o jornalismo. Há 50 anos, não havia mulheres jornalistas. Há 30 anos, começaram a aparecer (oficialmente) as «pioneiras», lutadoras contra a corrente, «armadilhando» anúncios para conseguirem os seus lugares, dando nomes masculinos e obrigando os contratadores a confrontarem-se com candidatos que... eram mulheres. Falo com conhecimento de causa: apesar de haver «marcos» que nunca foram postos em causa, a verdade é que a minha mãe foi a primeira mulher, há 40 anos, a praticar jornalismo numa publicação desportiva (escrevia sobre hóquei no «Mundo Desportivo»).
Quando comecei, há 16 anos, havia já muitas jornalistas, mas alimentava-se ainda a ideia de que era uma profissão para homens. Grau de risco, necessidade de uma flexibilidade horária incompatível, por exemplo, com a maternidade e a educação dos filhos, e algum machismo típico de um país (ainda mais) subdesenvolvido, ajudavam a explicar este «princípio». Às mulheres estava reservado o «cantinho feminino» dos jornais, as secções de cultura e espectáculos, e as produções consideradas menores (roteiros, guias, suplementos juvenis, etc.). Num caso ou noutro, havia trincheiras abertas na política, na sociedade, em cargos de chefia (Lourdes Feio e Edite Soeiro, hoje ambas na Visão, fazem parte dessas excepções). Nunca houve leis que obrigassem a imprensa a «gerir» percentagens masculinas e femininas.
Com o tempo, e naturalmente, por gosto e vontade, por dedicação e com talento, as mulheres começaram a encher as redacções dos jornais, das rádio, das televisões. Sem leis. Esta profissão tornou-se atraente para todos, por igual, e ninguém foi discriminado. Pelo contrário: na esmagadora maioria dos casos, foi reconhecida às mulheres uma sensibilidade e um rigor muito próprios, uma dedicação que a maternidade nunca abalou, e uma forma de escrita e de abordagem dos temas que era, senão inovadora, pelo menos alternativa. Nomes que vão de Clara Pinto Correia a Maria João Avillez, de Clara Ferreira Alves a Maria Elisa, para citar só alguns, tornaram-se sinónimos de qualidade, rigor, criatividade.
Hoje, mesmo que a estatística possa afirmar o contrário (não considera estagiários, contratados sem carteira, etc.), as mulheres constituem, senão a maioria, seguramente 50% das redacções. São directoras, chefes, repórteres, cronistas, jornalistas. Cobrem guerras, conflitos laborais, política, tudo. Não precisaram de «conquistar» terreno – bastou-lhes querer.
O exemplo do jornalismo pode aplicar-se à política. Ambas as actividades podem constituir poder. Ambas tiveram fama de «pertencer» ao universo masculino. Uma, libertou-se dessa imagem com naturalidade, sem leis nem percentagens. A outra, vive enrolada num preconceito descabido que parece querer reavivar uma fictícia «luta de classes».
Se calhar, e volto ao começo, a questão é mais simples do que a polémica quer fazer crer. Se calhar, elas não querem. Se calhar, elas preferem outros poderes – nas empresas, no jornalismo, na gestão, no comércio. Se calhar, elas têm razão.