Vítor Direito
Acabei por conhecê-lo, muitos anos depois, em circunstâncias especiais. Estava a fazer o DNA, no Diário de Notícias, e em Abril de 2004, para assinalar o trigésimo aniversário da revolução, tive uma ideia que me pareceu eficaz e criativa: conceber uma edição do suplemento submetida ao crivo da censura. Criar graficamente um processo de cortar os textos (ou bocados de texto) que a censura, se ainda existisse, eliminaria. E assinalar assim o que me parece ser, ainda hoje, a maior conquista do movimento militar: a liberdade. De informar, de opinar, de viver.
Para fazer esse trabalho, convidei um dos profissionais que mais sofreu com os cortes do lápis azul, e cujo perfil me garantia uma atitude pelo menos bem-humorada face ao desafio: António Ruella Ramos, que foi director do Diário de Lisboa. Simpático e cortês, Ruella Ramos aceitou o desafio, mas disse-me que achava um trabalho pesado para um homem só, e tinha dúvidas sobre as suas qualidades em matéria de “corte” – mas, como achou piada à ideia, sugeriu dividir o trabalho com um amigo que também tinha vivido activamente esses tempos em que escrever era fácil, mas publicar bem difícil. O amigo era Vítor Direito.
Juntos, eles leram as 48 páginas do suplemento e com mestria e rigor “cortaram-no” literalmente às postas. O designer Paulo Barata conseguiu um traço azul suficientemente visível, para se perceber a ideia, mas que ao mesmo tempo permitia ler o que estava cortado - e daí ser possível aferir os critérios da censura, tão ideológicos quanto, em determinadas áreas, ridículos na tentativa de “contornar” a vida comum de todos os dias.
Na capa desse DNA (dedicada a Salvador Dali...) surgiu o velho carimbo “Visado pela Comissão de Censura”. E surtiu efeito a ideia.
O que mais me surpreendeu, confesso, foi a forma absolutamente séria, profissional e empenhada como Vítor Direito e Ruella Ramos levaram até ao fim a missão - que, para mim, apesar de tudo, era uma brincadeira para marcar uma data.
No fim, ao agradecimento reconhecido que lhes fiz, encolheram os ombros como se não fosse nada com eles. Ou melhor: como se estivessem numa redacção de jornal a cumprir a missão que lhes tinha calhado em sorte.
Ontem, ao saber da morte de Vítor Direito, recuperei o mesmo pensamento que tive nesses dias de 2004: gostava de ter tido a oportunidade e o tempo para o ter conhecido melhor. Aprender com quem viveu é aprender duas vezes.
(A fotografia foi a que saiu nesse DNA, assinada por Alberto Pico)