A ferida aberta
(Crónica desta quinta na plataforma Sapo24)
Tenho ouvido algumas vozes mais precipitadas - não lhes quero chamar tontas… - dizerem que os 120 despedimentos no processo que envolve os jornais Sol e i só têm grande destaque por se tratar de jornalistas a escrever sobre colegas jornalistas. Como quem diz: há centenas de despedimentos, todos os dias, noutras áreas, e têm menor destaque nos media…
Em teoria, essas vozes teriam razão. Na prática, esquecem ou desconhecem que os media são um dos mais relevantes barómetros de uma sociedade democrática - e nessa medida, qualquer facto que sobre eles ocorre revela mais do que a aparência indicia, e mede o estado geral do regime. Quando assistimos a um investimento fortíssimo de capitais angolanos nos meios de comunicação portugueses, não se trata apenas de negócio e números: estamos a falar de poder, influência, e capacidade de ganhar dimensão noutros negócios que se pretendem fazer. Da mesma forma, quando se anuncia desinvestimento, também se revela mais do que parece. E o que parece já não é, em si, famoso.
É verdade que, neste caso, os dois jornais (comprados pelos mesmo empresário por razões que têm pouco a ver com paixão pela imprensa…), são casos de insucesso económico e financeiro, e só são sustentáveis, no estado em que se encontram, com investimentos a fundo perdido. A não ser que haja superiores interesses políticos, económicos ou financeiros, ninguém quer ver o seu dinheiro ir pelo cano…
Mas a crise do i do Sol deixa ainda mais à vista a ferida que os media portugueses (e não apenas portugueses - ainda que, em mercados pequenos, como o nosso, seja mais visível) vivem desde há anos, e ameaça continuar a abrir-se até ao osso. É uma ferida em camadas sucessivas e com efeito dominó.
Começou com a estrutura do negócio, cujo tsunami Internet ainda não conseguiu reverter ou ver saída: a maioria daqueles que deixaram de comprar jornais não deixou de se manter informado - limitou-se a obter de borla, num telefone ou num computador, o que antes tinha de pagar. A esta mudança de paradigma, os jornais responderam inicialmente com altivez e presunção, mantendo a sua oferta, muitas vezes desperdiçando capital humano (o único que marca a diferença entre meios de comunicação…), acreditando que “a marca” fazia tudo. Não faz. Estão agora a acordar para a realidade, mas lutam com a segunda camada da ferida: a crise económica que entretanto mudou hábitos, refez planos de investimento publicitário, e também alterou as regras do jogo financeiro.
À crise económica e à crise estrutural, em si feridas difíceis de sarar, veio juntar-se a terceira crise: a da ética e dos princípios. Houve um tempo em que os media eram liderados por gestores e empresários verdadeiramente interessados no negócio da comunicação social. Não eram pára-quedistas que queriam ter notoriedade rápida, empresários interessados em veículos de comunicação para os seus negócios, políticos em campanha eleitoral. Eram gestores de media. Também esses - com a honrosa excepção de Francisco Pinto Balsemão - foram saindo de cena. Deram lugar àqueles que, hoje, com a maior facilidade compram um jornal, ou o lançam de raiz, para dali a dois ou três anos mudarem de ideias e venderem ou fecharem o que já não lhes parece “interessante”.
A palavra “interessante”, aliás, ganhou um lugar de honra no mundo dos negócios. É usada como sinónimo de lucro, não como interesse efectivo. Diz muito sobre a ética de quem anda por aí a mexer com a vida de quem trabalha, de quem hoje é aliciado para um “projecto de comunicação” apaixonante e amanhã está no desemprego sem perceber como nem porquê.
Podem dizer-me que é um sinal dos tempos - para mim, é um sinal do fim de um tempo. Para não dizer que é mesmo o fim de um tempo. A ferida não pára de crescer, e não vejo quem a queira tratar.
Os leitores, esses, foram à sua vida e não querem voltar a pagar o que subitamente, há uns anos, começaram a oferecer-lhes. No futuro, talvez tenham o que estão a pedir: nada.