Cartas fechadas
(Crónicas originalmente publicada na revista Lux Woman. A deste mês já saiu, está aí...)
Sou daqueles seres incuráveis que pertencem a um passado mais do que passado: ainda compro jornais diários em papel. Não há dia em que não pense no contra-senso de um produto que, no momento em que o adquiro, está dez horas desactualizado, e cujo conteúdo posso ter gratuitamente em várias plataformas. Mas compro na mesma.
Entre outras virtudes - há algumas, apesar dos tempos… -, as edições em papel ainda têm o chamado “pequeno anuncio”. Porém, desde que a crise se instalou, reparo que boa parte do pequeno anuncio dos jornais é ocupada com comunicações sob a designação “Carta Fechada”. Titulo mais romântico seria difícil - mas de romântico não tem nada. São os anúncios das empresas falidas cujos bens se disponibilizam para compra através da tal “carta fechada”. Doeu-me o confronto entre a beleza da expressão “Carta Fechada” e a sua efectiva tradução. Por outro lado, senti que havia, ainda assim, algum sentido na potencial modernidade da ideia. Não vale a pena fugir: o tempo da carta morreu. Como do telex ou do telegrama. Quando temos cartas na caixa do correio, é quase sempre pelas piores razões: contas para pagar, avisos de suspensão do serviço, ameaças da Autoridade Tributária, convites despersonalizados para eventos a que não pretendemos comparecer.
Vou mais longe: se nos aproximarmos da actualidade e entrarmos no mundo do mail, mergulhamos no universo negro da esquizofrenia postal. A sério: as finanças acham que as cinco da manhã de domingo constituem um bom momento para enviar mails devastadores, e há associações de pessoas que “gostam de ver aves” a usar listas de mails que incluem pessoas como eu, que sobre a palavra “ave” só me ocorre a bela perdiz com couve e feijão branco…
O meu dia começa com a limpeza deste correio “mau”, numa espécie de atitude pro-activa que me lembra o anuncio que falava do “bate-escova-aspira”. Mais tarde, ao final da noite, volto à carga e repito a operação.
A ideia de correio mudou de tal maneira que tenho a profunda convicção de que, nos dias que correm, a melhor forma de dar nas vistas, e ter alguma notoriedade numa mensagem que queiramos transmitir, passa de novo pelo velho processo da carta pessoal, de preferência escrita (ou pelo menos endereçada…) à mão. A essas eu ligo. Quem não liga? Um envelope com a letra trôpega, e a morada rasurada, deixa-me em pulgas - ao contrário de uma carta do Banco, que é quase sempre indiferente. Ou indesejada. Mesmo quando perfeita.
E tudo isto vem da Internet e da mudança que operou na nossa forma de comunicar, viver, e até… amar. Penso muito sobre isso.
Exemplo: temos agora um Papa modernaço e disponível para o debate. Mas ainda não vi ninguém chegar-se à frente com uma proposta que me parece não apenas ajustada como essencial. A saber: faz sentido, nos votos do matrimónio, falar na saúde e na doença, nos momentos bons e maus, e não ser ainda expresso algo como “com ou sem facebook”?
Não adianta fugir com o rabo à seringa: a maioria dos divórcios já não tem a ver com saúde e a doença, ou a riqueza e a pobreza, mas com parvoíces no Facebook ou sms’s que revelaram mais do que deviam.
Vamos fazer de conta que não existem? Vamos fazer anúncios a falar de “cartas fechadas”? Se a comunicação é a chave mestra dos dias de hoje, então as palavras têm quase força de lei. Está na altura de mudar discursos, titulo, definições e conceitos.
Quando voltar a casar, gostava de dizer “prometo ser-te fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, no Facebook e no twitter, no Instagram ou mesmo por mail, todos os dias da nossa vida, com ou sem roaming, e mesmo que não tenha rede ou bateria no telefone”.
E se fosse possível, para voltar ao começo, também gostava que uma carta fechada não fosse mais do que isso: uma carta fechada à espera que o destinatário a abra. Como um jornal à espera de quem o compre. Ou um amor puro e sem intermediários. Talvez apenas sonhe com um tempo em que voltaremos a ser verdadeiros. Nos actos como, previamente, nas palavras que os antecedem.