Cusquices
(Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman. A deste mês saiu ontem e está excelente)
(Por acaso, o ultimo parágrafo está - felizmente - ligeiramente desactualizado...)
É claro que há uma porteira cusca dentro de cada um de nós. Por mais que digamos isto e aquilo, e falemos de respeito e “não tenho nada a ver com isso”, se nos deixam uma ponta da janela aberta, nós espreitamos; se nos põem a revista à mão, nós coscuvilhamos; se nos deixam ouvir uma história cabeluda, nós ouvimos.
Pronto. A generalização deu-me jeito para contar uma história que demonstra, uma vez mais, como as ideias pré-concebidas e os estereótipos são enormes tolices que tomam contam das nossas vidas. Uma profissão dita um estilo; uma imagem determina um conteúdo; Uma palavra define uma pessoa. E no entanto…
… E no entanto aconteceu-me assim.
Ía no metro, que estava cheio, e encostei-me de pé num canto. À minha frente estava um jovem de menos de 30 anos, fato e gravata entre o cinzento e o preto. Podia ser bancário. Ou engenheiro informático. Ou nada disso, lá estou eu já a pré-conceber uma ideia a partir de uma imagem. Estava então um jovem de fato e gravata presumivelmente a caminho de casa. Eram sete da tarde de um dia sem história.
O telefone dele emite um sinal, tira o telefone do casaco, abre, e de repente o écrã está tão de frente para ele como de frente para mim. É aqui que o cuspa acorda. Se fosse educado e respeitador, eu viraria a cara para o lado - mas a tentação foi maior e eu li a mensagem que ele acabara de receber. Dizia mais ou menos isto:
Já estou em casa. E tu, como correu a reunião? Vens cedo?
Não resisto normalmente à minha voadora e excessiva imaginação. Comecei a imaginar uma rapariga, na sala de um apartamento modesto nos arredores de Lisboa, a escrever esta mensagem, à espera do marido. Certamente casados há pouco tempo, a aliança dele brilha na mão esquerda. Uma vida normal, casa-trabalho, trabalho-casa, e a rotineira troca de mensagens ao fim do dia, o jantar, “compras cebolas?”, “sexta jantamos em casa da minha irmã”, “não te esqueças de telefonar ao teu primo, faz anos hoje”. Tudo o que não desejamos quando temos, e invejamos quando nos falta.
Enquanto a minha imaginação ía e vinha, as mensagens continuaram. E eu, o cusco atrás do rapaz, a ler. Respondeu ele:
A reunião foi uma seca, já calculava, mas correu bem. Estou no metro, a caminho.
E ela:
Que bom, ainda é cedo.
Imaginei um sorriso doce, dela, e procurei adivinhar a resposta dele. Iria escrever algo como “até já, amor”. Apostei comigo próprio, num jogo já completamente descarado de espectador do alheio.
Mas não foi assim. O rapaz, sem perder o ar seráfico, a expressão cerrada e banal, o mais banal dos olhares para um telefone, escreve o seguinte:
Estou desejoso de chegar a casa, agarrar-te com força, arrancar-te a roupa toda no meio da sala até te ter toda nua e te…
… Bom, daqui para a frente, a linguagem entra no domínio do XXX, e não posso reproduzir o que li, mas vos garanto ser uma declaração sexual de uma intensidade e com uma força que, por si só, constituiriam clímax para qualquer humano sensível.
Varado, eu olhava para a cara do homem e para o telefone, e via dois filmes distintos: no filme real, ali, no metro, um homem teclava no seu telefone como quem paga a conta de luz ou confirma a consulta médica via SMS; no ecrã do seu telefone, eu testemunhava (envergonhado, admito, pois repentinamente senti-me realmente voyeur…) um momento fortíssimo de sexo virtual e a revelação de uma personalidade que não batia de todo certo com a imagem que exibia.
Felizmente chegou a minha estação de saída e acabou ali o meu encontro com as ideias pré-concebidas. E o que ficou foi algo bem mais bonito e profícuo: o reconhecimento de que aquele rapaz me deu uma lição de humildade e um remédio santo para a tentação do julgamento prévio.
E mais: por detrás do seu fato e da gravata, e da aparência de uma vida sem história, ele tinha a quem mandar aquela mensagem cheia de vida. E eu não. Engoli em seco.