Gritos mudos *
(Crónica originalmente publicada na Lux Woman. A deste mês saiu hoje e a Cláudia Vieira está linda...)
Foi há quase vinte anos. Queria à força ser independente, dono da minha vida, do meu destino, e saí de casa dos meus pais para viver sozinho numa casa alugada em Almoçageme, perto do mar da Praia Grande, que foi o mar da minha infância e juventude. Não durou muito tempo essa solidão - que nem sabia, em rigor, se desejava. Poucos meses depois apaixonei-me e vim viver para Lisboa, para o apartamento da namorada, que era mais velha e já tinha um filho. Não foi um começo de vida fácil para um miúdo de vinte e poucos anos - mas foi seguramente apaixonado.
O apartamento onde vivíamos, apesar de recente, não tinha muita qualidade. Bastava algum vizinho falar um pouco mais alto e, por entre condutas de ar e respiradouros de casa de banho, ouvíamos quase tudo o que se dizia. Para o melhor e para o pior.
Certo dia - um domingo ao final da tarde - estava sozinho em casa, e oiço o começo de uma discussão entre marido e mulher. Não demorei a perceber que se passava no apartamento mesmo ao lado do nosso. O que começou numa discussão tensa rapidamente se transformou numa gritaria - e daí a uma soma de ruídos estranhos, violentos, que tanto podiam ser agressão como apenas objectos a serem atirados pelos ares. Nunca mais esqueci os gritos da mulher: “Tens o diabo no corpo, tens o diabo no corpo!”. Confesso que, num primeiro momento, fiquei confuso sobre o que devia fazer. Depois, como se fez silêncio e não ouvi mais nada, nada fiz. No dia seguinte, falei com um advogado meu amigo, que pouco acrescentou à minha confusão e duvida: chamar a policia? Violação da privacidade? Ter problemas com a vizinhança? Que sabia eu daquele casal? O conselho não andou longe do “não te metas onde não és chamado”. Uns meses mais tarde, deixei de viver ali e nunca mais soube daquele casal - ele, um homem de farto bigode, que passava tardes na tasca em frente a casa a beber imperiais; ela, uma mulher sem história das tantas com quem nos cruzamos nos dias que passam.
Sempre que se fala de violência doméstica, que se denunciam maus-tratos, que os jornais relatam as mortes consecutivas, os casos “assinalados” que afinal não foram “assinalados” para nada, recuo a esse tempo em que a lei não estaria do meu lado se eu denunciasse o que tinha ouvido, em que o tema não era de debate publico, em que mesmo uma pessoa mais ou menos informada não sabia como lidar com um caso concreto - e pergunto-me como é possível termos evoluído tão pouco ao ponto de 40 mulheres portugueses terem sido mortas em situações de violência domestica em 2014, e esse numero não ter tendência a diminuir - pelo contrário - neste ano de 2015.
A legislação mudou e melhorou. Em teoria, a sinalização de casos iniciais deveria prevenir consequências gravosas. O tema ganhou espaço no debate publico e não é hoje mais, como no tempo do episódio que relatei, algo difuso e pouco claro. Mas nada disso mudou a essência do que senti naquele dia, naquela casa, sozinho, e sem saber o que fazer: a impotência perante a monstruosidade de uma violência dentro das quatro paredes da conjugalidade.
Se fosse hoje, sabia bem o que fazer. E faria. Pergunto-me porque raio tanta gente não sabe nem faz o que tem de fazer quando tudo está à vista nos gritos que atordoam uma noite, nos sinais exteriores dessa violência abjecta, ou na queixa que se apresenta numa esquadra de policia. Mudou quase nada para quase todos. Para mim, com esse eco dos gritos daquela mulher ainda nos ouvidos, mudou tudo. Nunca mais foram “gritos mudos”.
* Titulo de uma canção dos Xutos & Pontapés que não tem relação com este tema. Ou talvez tenha: “Gritos mudos chamando a atenção/ Para a vida que se joga sem nenhuma razão”