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Pedro Rolo Duarte

25
Jan14

Inesperadamente, uma canção

(Crónica originalmente escrita para a revista Lux Woman. A deste mês já saiu do forno, quentinha...)

 

Nunca fui dado à poesia. Não fora Eugénio de Andrade, no começo da adolescência, e depois Fernando Pessoa, e estava condenado à ignorância. Não que me sinta especialmente letrado, mas pelo menos acabei por chegar, por essa via, a poetas como Herberto Helder e Ruy Belo, e ser capaz de gostar ou desgostar - sem receio, de me encantar por um qualquer Quim Barreiros do poema…
O que não esperava era, uma vez mais, que a vida me surpreendesse nesse domínio. E a história começa num noite de Primavera, numa esplanada junto ao rio, à conversa com um conhecido e reconhecido musico/cantor português. Falávamos dos caminhos da musica, e às tantas ele lança-me um desafio:
- Já experimentaste escrever letras de canções?
Nunca tinha pensado em tal coisa. Na verdade, para mim, letras de canções são poemas musicados, e nessa medida estão longe do universo a que me dedico. Mas aquele meu amigo, também ele compositor, não apenas me desafiou como quase me disse "aposto que és capaz!".
Garanto-vos: não há nada pior (ou será melhor?) do que desafiarem um homem do signo Touro. Imaginem o animal que o representa numa arena - assim me sinto eu, como se tivesse alguém à minha frente com uma capa encarnada a desafiar um olhar que se deixa cegar pela cor.
Nessa mesma noite, escrevi três poemas - para mim, com toda a modéstia, letras de canções. Nas semanas seguintes, foram dezenas que me deixaram acordado pela noite dentro. Entre rascunhos e composições completas, em pouco tempo eu tinha 60 letras de canções. A coisa cresceu de tal forma, e com tal gosto, que senti absoluta necessidade de me controlar e parar. Rever e aperfeiçoar o que estava escrito. Ter distancia critica para apagar e esquecer muitas das parvoíces que deixei correr no teclado do computador.
Quando, por fim, quis tomar decisões, escolhi seis "textos". Enviei-os ao meu amigo. E fiquei, entre o receio e o desalento, a pensar que nada do que tinha escrito valia a pena. Até que, alguns dias depois, ele respondeu: gostei destas "letras" (mais de metade de minha escolha...), e vou trabalhar especificamente em cima de uma. No momento, confesso, nem percebi muito bem o que ele quis dizer com aquilo. Uns meses depois, quando me telefonou e disse que a canção estava composta e ia entrar em estudio para a gravar, continuei numa espécie de estado de negação, sem perceber em rigor o alcance da coisa.
Até que, há dias, ele me entrou pela casa dentro com um CD nas mãos. Era o seu novo disco, onde às tantas - em rigor, na faixa 7… - estava o putativo poema que havia escrito. Entre o aturdido e, como diz um amigo, "abazurdido", coloquei o disco no leitor e sentei-me para ouvir.
O que vos posso dizer? Que não julgava possível, quase aos 50 anos, com 30 de trabalho em cima de palavras, ter ainda um verdadeiro "baque" de comoção e emoção ao confrontar-me com palavras que escrevi - e subitamente estavam ali, a ecoar na sala, musicadas, cantadas, interpretadas. Como se ganhassem uma vida que nunca pensaram ter, como se tivessem sido promovidas a um patamar superior de vida.
Foram dias a fio a ouvir-"me". A sentir o indizível e cada palavra, e cada estrofe, como se conseguisse imaginar quem ouve de novo e sente pela primeira vez. Há qualquer coisa de egocêntrico neste momento, mas prefiro achar que é tudo uma enorme surpresa. No mês que vem, a canção cuja letra escrevi andará por aí, deixará de ser minha, poderá ser de tantos como de tão poucos. Pouco importa. Chegar ao ano em que faço meio século de vida e conseguir, uma vez mais, surpreender-me e comover-me com as palavras, só pode dar razão a quem um dia me disse: pode acabar a água e o sol, mas as palavras, nem que sejam as que gritam por água e sol, acabam mais tarde. E, acrescento: podem sempre surpreender um pouco mais.

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