Ironias…
(Crónica de hoje na plataforma Sapo24)
Nos seus momentos de solidão, o Presidente Cavaco Silva deve seguramente perguntar-se muitas vezes “que mal fiz eu para merecer isto?”…
Havia um generoso numero de respostas certeiras a dar a esta pergunta, mas não vale a pena bater mais em quem já bateu no fundo. Deixemo-lo em paz.
Talvez apenas notar a ironia dos tempos: o homem que sempre quis fazer tudo com rigor e precisão, e que certamente terá sonhado com um final de carreira luminoso, magnânimo, sólido - sai afinal de cena, no fim do seu segundo mandato, pela porta dos fundos, a medo, engolindo sapos, mostrando em definitivo que nunca foi “Presidente de todos os portugueses”, e sem sequer conseguir juntar a admiração dos seus pares. Sócrates ainda arrebanha 500 num almoço que assinala um ano… de prisão! Cavaco nem livre consegue chegar-lhe aos calcanhares.
A ironia não podia ser maior: o derradeiro acto público de Cavaco Silva vai ser dar posse a um Governo caucionado pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda, com o PS na frente. Como se houvesse alguém lá em cima a mexer os cordelinhos e, numa risadinha diabólica, exclamasse: “agora toma, que é para não voltares a dizer que raramente te enganas e nunca tens dúvidas”… E pelo caminho ainda tem que assistir, na TV, a homenagens a um ex-primeiro-ministro sobre quem paira uma nuvem demasiado pesada, mas não o suficiente para o afastar da ribalta.
O Presidente enganou-se, e viveu na dúvida, dias demais. Não que a solução encontrada seja perfeita, ou duradoura - não estou a ver a base eleitoral do PCP brincar com o serviço quando António Costa fizer o que Bruxelas obriga a fazer… -, mas a atitude que Cavaco tomou desde o dia das eleições (ou mesmo os avisos que lançou antes delas…) até à última terça-feira, a tal “birra dos 50 dias”, mostrou-nos de que massa é feito aquele homem e como é possível, em democracia, eleger figuras que se revelam bem diferentes dos exemplos que o regime inspira e convoca.
Aqui chegado, Cavaco dirá sempre que fez o que tinha a fazer (depois de todas as tentativas para fazer o que não devia). E vai sentir um alivio de consciência no lugar do peso que efectivamente devia ter. Não é bonito de se ver.
Não é um final feliz para este Presidente. Não sei se é um bom começo para António Costa. É seguramente um momento infeliz do PCP e do Bloco de Esquerda.
Mas acaba por ser uma lição para todos nós: agora sabemos, e é valido por fim para todos os partidos, que na política não há possíveis nem impossíveis. Há apenas a voragem da ambição - e ela não tem limites. Felizmente, em democracia, a lei trava essa voragem e limita a ambição. Do mal, o menos.