Na hora da verdade, cada um por si
(Crónica de hoje na plataforma/newsletter Sapo24)
O lugar-comum que faz titulo desta crónica podia ser dito a respeito dos portugueses, dos espanhóis, dos franceses, dos ingleses, e de mais um generoso conjunto de povos dispersos que, por razões mais ou menos explicáveis, se tornaram países.
De todos, os Estados Unidos da América talvez constituam o conjunto do estados que melhor espelha a bipolaridade de um mundo ocidental que enche a boca com a democracia e a liberdade mas, quando fecha a porta de casa, ao fim do dia, prefere a segurança com uma espingarda na mão, e esquece quem construiu as torres onde trabalha diariamente…
A enorme comédia (ou tragédia…) desta campanha eleitoral americana talvez tenha sido mostrar, da forma mais rasca, básica, elementar, a contradição de que todos somos feitos entre a defesa de um regime “sexy” e a ameaça que sentimos diariamente. Trump promete um muro a separar o México dos EUA? A Europa ergue muros no Tunel de Mancha, em Calais, na Hungria. Trump é javardo e ordinário com as mulheres? E que fazem tantos militares a quem cabia defender refugiadas e imigrantes na Europa?
A ideia é sempre a mesma: nas eleições de há dois dias nos Estados Unidos, como na fragmentação ideológica e moral da Europa, o que está em causa é a profunda divergência entre o que a maioria pensa sobre a democracia e a forma como, perante a mais escassa ameaça, muda a atitude, mesmo que diga que não muda de ideias.
A democracia, o estado social, a liberdade, a livre circulação de pessoas e bens, a partilha cultural e a inclusão - tudo isto só faz sentido enquanto não são ameaçada as nossas pequenas coisinhas: a casinha e os seus electrodomésticos, o carrinho e a pintura metalizada, a ameaça de bomba no Metro, o emprego e o subsidio anual para as férias no resort em Cancun.
Um dos falhanços mais burros do comunismo foi presumir que mudava a essência do ser humano, que trocava ambição por solidariedade, concorrência por complementaridade, e personalidades por cabeças acéfalas. Um pouco menos mal, a democracia presume que, sendo todos diferentes, somos capazes de, nos momentos chave, nos unirmos em nome de ética, moral, valores e um conjunto de bons princípios. Já vimos que sim. Já vimos que não.
… Ou seja, lamentavelmente, parece não ser (sempre) verdade. Sentados nos sofás a ver pela TV o lavar de roupa suja, talvez tenhamos tido a tentação de pensar que na Europa as coisa são diferentes. Receio que não. Donald Trump foi o grunho sem filtro que, na hora da verdade, disse o que boa parte de nós faz: os outros que se lixem. Esperava que o feitiço se virasse contra ele. Mas nem isso aconteceu. O caos está descarado.