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Pedro Rolo Duarte

21
Dez15

Natal é quando o homem… deixar

(Crónica publicada na revista Lux Woman. A deste mês já está à venda e está cheia de boas matérias...)

Se o Natal é o tempo das melhores intenções, das boas práticas, do pensamento solidário, cabe aqui uma reflexão um pouco mais distante, e mais pausada, sobre um dos casos que abalou este 2015: a aldrabice que se descobriu sobre a Volkswagen, e a forma como, durante anos, boa parte dos automóveis saídos das fábricas do grupo eram modificados por forma a “portarem-se bem” nos testes sobre a poluição que os escapes emitiam, e depois serem tranquilamente poluidores quando conduzidos pelos compradores comuns nas ruas das cidades europeias, norte-americanas, asiáticas.
Não houve quem não falasse do caso e condenasse o Presidente da companhia, que rapidamente se demitiu (recebendo, escandalosamente, uma choruda pensão). Certíssimo. Em Portugal, a empresa publicou um anuncio na imprensa que primava pela dignidade e pela seriedade: “Quebrámos a peça mais importante dos nossos automóveis: a sua confiança”. E depois deste titulo, um texto discreto, sem desculpas nem floreados, com as palavras certas para remediar o irremediável. O melhor que podiam fazer no meio de tamanho escândalo.
Porém, há um lado mais humano, mais pequeno, e talvez por isso mais sinistro, que ficou a pairar sobre a minha cabeça. De forma simples: para que uma aldrabice, que fez com que milhões de carros poluíssem o nosso ar mais do que seria concebível (por governos já de si permissivos…), durante anos a fio, havia que envolver na mescambilha um generoso numero de profissionais. Engenheiros, quadros técnicos, gestores, directores de marca, directores de vendas, profissionais ligados à construção dos motores, às fábricas, aos acabamentos, no limite até mesmo ao design que permitia acomodar os motores dos carros no seu espaço vital. Sem querer exagerar, é razoável admitir que, na cadeia hierárquica que leva à produção de um automóvel, terá havido dezenas de pessoas que sabiam que, em nome da ganância, se manipulavam carros cuja emissão de poluentes na atmosfera seria muito superior ao desejável para as presentes e futuras gerações de seres humanos a viver à face da Terra.
E é aqui que eu começo a sentir algumas náuseas. Estamos a falar de profissionais que são certamente pais, ou mesmo avós; que vivem na terra e respiram o mesmo ar que todos nós; que deixaram de deitar papeis para o chão, ou começaram a separar o lixo, em nome das ameaças que fomos percebendo que se abatem sobre o planeta onde vivemos… Neste quadro, pergunto-me: quem, em consciência, e em nome do lucro, descarta o ambiente que o seu filho ou neto vai respirar? Quem, na posse das suas plenas faculdades, é capaz de aldrabar meio mundo para obter, a troco da violação de leis razoáveis, um motor mais barato, ou mais potente, e espalhar essa aldrabice? A nenhuma daquelas pessoas revoltava uma manigância que, no limite, podia matar os seus filhos e netos?
É nesta ultima pergunta que me fixei. E é nela que penso quando chegamos a mais um Natal, a mais um tempo de boas práticas e melhores intenções, a mais um tempo que convoca o cuidado e a atenção para com o nosso semelhante, e nos encaminha para balanços e perspectivas. Na verdade, fala-se demasiado da marca de automóveis - mas é bom não esquecer que a marca não existe, a não ser nos painéis dos mercados de capitais. Por trás daquele símbolo, e daquele escândalo, estão pessoas. Que magicaram um crime. E o praticaram. Sem qualquer espécie de vergonha ou pudor.
Não imagino quantas outras aldrabices se praticam por esse mundo fora em nome do lucro e do dinheiro - mas sei que esta, para mais vinda desse país “exemplar”, que sempre quer ser a Alemanha, entristece o meu Natal e os desejos de renovação e de redenção que não deixo de pedir para o ano que se segue. Pior: impede-me de chegar a este momento do ano e pensar que, no fundo, no fundo, não somos tão maus quanto nos pintamos uns aos outros.
Se calhar não somos. Mas por cada escândalo Volkswagen que se revela, há uma espécie de prédio enorme de esperança e boa vontade que se desmorona.
Não queria escrever uma crónica triste no Natal - mas saber que há gente que não se importa de deixar os próprios filhos a respirar um ar menos puro só para garantir lucros, objectivos, dinheiro, não me dá margem de manobra para uma época puramente doce. Desta vez, há um amargo de boca. Pode ser que um sonho da minha pastelaria preferida, ou um coscorão, consiga apaziguar-me. Bem preciso.

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