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Pedro Rolo Duarte

06
Fev15

O problema de viver

(Para a A.)

Passo a vida, entre amigos, a falar dos presentinhos que a vida nos deixa cá dentro, adormecidos, fechados, embrulhados - e que se desembrulham e ganham vida própria sempre que os dias nos confrontam com situações semelhantes, ou que recordam momentos vividos, ou convocam sentimentos que nos parecem familiares.
E há coincidências do caraças.
Ontem, dia 5 de Fevereiro, vi na televisão um filho chorar e indignar-se e revoltar-se com a morte da mãe, com pouco mais de 50 anos, neste estranhíssimo e pouco recomendável episódio dos doentes de hepatite C e do medicamento caríssimo que seres humanos decidem não ministrar a outros seres humanos. Não vou comentar o triste quadro e tudo o que ele significa.
Mas, não tendo qualquer relação, lá se abriu um presentinho guardado cá dentro. No mesmo dia 5 de Fevereiro, data que parece sempre um neon aceso na minha cabeça, em 1987 (há 28 anos, portanto…), o meu pai morria no Hospital de Santa Maria, na sequência de um silencioso e fatal enfarte do miocárdio.
Na véspera, 4 de Fevereiro, à noite, depois de trabalhar, e por não se sentir bem, passou pelas urgências do mesmo Hospital. Apanhou um estagiário de serviço, que sumariamente diagnosticou excesso de trabalho, stress, e sugeriu que tomasse uma aspirina e dormisse. Assim aconteceu. Quando acordou, o meu pai sentiu-se pior, o quadro não tinha mudado, foi pelo seu pé ao Hospital Pulido Valente, depois de ambulância para Santa Maria, e aconteceu o que se sabe que aconteceu.
Na altura também pensei em mover uma acção contra o Hospital, procurar responsabilidades (ainda guardo um papel qualquer com a assinatura do médico), transformar a dor e o sofrimento num gesto de indignação e revolta. Talvez o devesse ter feito.
Mas não fiz. Conformei-me com o mais linear e objectivo dos factos: nada devolveria a vida ao meu pai, nem a alegria às vidas de quem o amava. Era argumento suficiente para o recato e a procura demorada da paz possível.
Ontem, quando vi na televisão a revolta do filho que perde a mãe por falta de um medicamento que a poderia ter salvo, pensei na ironia parva deste encontro de datas, na memória que subtilmente me acompanha - como um ferrão espetado na carne -, e na circunstância de tudo ocorrer no momento em que, emocionalmente, sou por fim feliz e encontro a paz que tanto procurei.
No confronto de todos estes sentires do sentir, não consigo ir mais longe do que isto: o problema de viver não está tanto no verbo, como está naqueles que, além de nós, o podem conjugar. Seja o médico que infelizmente mandou o meu pai para casa, ou na A. que felizmente deu de novo sentido à minha vida. Não estamos sós, e é isso que encaixa ou desencaixa os dias que vivemos.
Há 28 anos, sentia a mesma revolta daquele filho que vi na televisão. Hoje, prefiro a memória do meu Pai vivo, do seu humor, do seu talento, da sua dedicação aos que o rodeavam - e convoco tudo isso para o amor que vivo, como já merecia há muito tempo. Há presentinhos que ainda se abrem, mas já não conseguem vencer-me. Ou como cantava a Elis: “vivendo e aprendendo a viver”.

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