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Pedro Rolo Duarte

03
Nov17

O Tomaz

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Até quase aos 40 anos, tive uma sorte brutal: com raras excepções, cada pessoa que entrava na minha vida, ou vice-versa, por razões profissionais ou pessoais, era uma mais-valia, e orgulho-me de ter aprendido a viver muito bem acompanhado. Quando dei pelos factos tinha mais amigos do que tempo de qualidade para lhes dedicar. Cheguei a dizer, nas conversas parvas de fim de noite, depois de acabar o gelo, que não queria conhecer mais ninguém, até porque não havia mais ninguém para conhecer.

As infantibilidades taxativas que tantas vezes sublinhavam alguma arrogância tinham de ser pagas – e logo ao virar da década seguinte, abriram-se as hostilidades. Vieram as revelações tristes, as desilusões, os telefones que não tocam quando antes eram excessivos, e um longo caminho de pedras que, por pior que tenha sido nalguns momentos, me recolocou no universo e me deu o banho de humildade e simplicidade de que precisava.

Como se não bastasse, ainda me acrescentou uma lição sobre as certezas: julgava que havia algumas, mas não há uma única. Foi assim que, depois dos 40, e ao contrário do que me parecia óbvio, conheci algumas das pessoas mais importantes da minha vida, aproximei-me de quem não esperava, e dei comigo a pensar nos anos perdidos a julgar que o “mundo cá fora” estava cheio de “não presta”, como dizia a madrinha da minha mãe.

Não estava. Havia gente que me fazia falta e eu não sabia. Havia gente a quem talvez fizesse falta, e não sabia. Acima de tudo, havia gente “lá fora” e eu persistia em manter a porta fechada.

Foi muito graças à minha mais que muito amiga Teresa Esquível que as coisas mudaram – a sua forma livre e desabrida de viver, a ausência de preconceitos idiotas, um coração do tamanho do mundo, uma amizade sem limites nem fronteiras, e uma inexcedível capacidade de transformar em humor, ou amor, a maior contrariedade, ajudaram a libertar-me das merdinhas todas que se nos colam na vida.

Tudo isto para chegar aqui: por causa da Teresa, tarde mas felizmente ainda a tempo de lhe reconhecer o melhor, conheci o Tomaz Bairros, de quem ouvira falar muitas vezes no tempo das “portas fechadas”. Quem o conhece percebe que a frase da coca-cola se lhe aplica como uma luva: primeiro estranha-se, depois entranha-se.

Comigo foi. Estes dez anos em que convivi com o Tomaz, aprendendo a ler-lhe aquele olhar entre o malandro, o ausente e o eufórico, foram sempre, sempre, lições. De humor, de simplicidade, de inteligência, de cultura, de voar numa única frase de um concurso de karaoke a um estudo aeronáutico improvável; de receber dele os conselhos do prazer – “não há entrecosto como o do...” -, de o ver de fato e gravata com a mesma atitude com que participava activamente nas festas da sua terra.

O Tomaz foi a surpresa que já não se espera – e a sua morte, a tristeza funda que não se deseja a ninguém. Hoje é um dia muito triste. Muito triste. Não há como contornar as palavras. São o que são. E ardem cá dentro.

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