O verdadeiro artista
(Crónica de ontem na plataforma Sapo24)
Quando comecei a trabalhar em jornalismo, há mais de 30 anos, havia uma ideia clara sobre a expressão “verdadeiro artista” (e convém sublinhar que escrevia no “Sete”, semanário dedicado ao mundo dos espectáculos). E o “verdadeiro artista” era, em Portugal, Marco Paulo - como no Brasil seria Roberto Carlos, e em Espanha talvez um Julio Iglésias. Em todo o caso, era sempre alguém cuja atitude, popularidade, capacidade de metamorfose social, se revelavam no momento em que as luzes de um palco se acendiam. Como se não existisse passado nem futuro, como se a vida tivesse efectivamente começado no dia do primeiro disco de ouro. Lembro-me de entrevistar Marco Paulo, sem palco e apenas com um gravador de cassetes, num bar manhoso das avenidas novas, e ele próprio se deixar levar pela simplicidade do seu passado de João Simão da Silva, e deixar cair a máscara que fazia do humilde cidadão uma estrela perseguida pelas admiradoras… Lá está, naquele instante não havia luzes nem plateia.
Mais tarde, a inteligência de Herman José transformou a ideia de “verdadeiro artista” num “cromo” da sua vasta galeria, e Tony Silva reinou, gozando e rindo como podia, anos a fio, para deleite de todos nós. O “verdadeiro artista” passou a ser um personagem. Mas também um adjectivo…
Até que chegou José Sócrates. E tudo mudou outra vez. O “animal feroz” moldou a sua imagem à semelhança do Marco Paulo nos anos 80: sem passado, sem História, uma máscara e um fato que se veste todas as manhãs, imune aos factos e a toda a gente, e “hits” populares para alimentar multidões crédulas, ou ignorantes, ou apenas com vontade de gostar. Vontade de gostar é perigoso, porque não tem controlo, nem lógica, nem pensamento prévio. É como comer chocolate.
Esta semana, Sócrates voltou à televisão. Acenderam-se de novo as luzes. E o “verdadeiro artista” revelou-se em todo o seu esplendor. O inocente. O perseguido. A vítima. Toda uma representação que, infelizmente, é possível - porque temos agentes de justiça fracos, sem capacidade de investigar e responder atempadamente, e que conseguem deixar um arguido sem acusação mais de um ano.
O “verdadeiro artista” existe porque as luzes se acendem - e isso apenas sucede quando há espectadores suficientes e faz sentido a máxima “the show must go on”. Se José Sócrates já tivesse uma acusação consistente e sustentada, talvez as luzes não se acendessem. Talvez a conversa fosse outra. Talvez o espectáculo fosse uma farsa. Mas o episódio desta novela é outro, e o “verdadeiro artista” voltou. Por mim, tenho mais saudades do tempo do Marco Paulo.