Trabalhar sem aquecer
(Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman. A deste mês saiu hoje mesmo!)
Matéria recente numa revista de Televisão: “O meu filho quer ser estrela de TV. E agora?”. Só este titulo inspiraria uma tese de mestrado. O que é uma “estrela de TV”? Pode um pai deixar que a questão se coloque sem antes se interrogar sobre o absurdo da própria questão? Que raio de profissão é esta, “estrela de TV”?
O artigo era surreal nalguns pontos de um pretenso guia prático para pais cujos filhos concorrem a concursos de TV (com e sem talento): além dos miúdos faltarem às aulas para os ensaios e algumas gravações, o (cito) “encarregado de educação também deverá faltar ao trabalho”. Referências aos peculiares contratos que deixam menores de idade nas mãos de empresas de televisão, e ao facto de não haver qualquer espécie de assistência psicológica em caso de derrota, já nem me conseguiram surpreender.
Mas o artigo remeteu-me para um cantor de generosa idade que dizia numa entrevista algo como isto: “quando comecei, era preciso trabalhar para se ser conhecido; agora, é preciso ser-se conhecido para se ter trabalho”.
As duas realidades - a do artigo sobre “estrelas de TV” e a do lamento do cantor - cruzam-se no momento em que atingimos o grau zero da sensatez no mundo laboral. Já nada é garantido, válido, ou sequer lógico. Ter um curso ou não ter, ter talento ou não ter, ter experiência ou não ter - tudo é aleatório, caótico e imprevisível. Há quem cresça a querer “ser famoso” - e há pais que acham “isto” razoável e normal.
Se aceitamos que “ser famoso” pode ser ambição profissional, somos forçados a aceitar que ter idade pode ser algo desprezível. Um empresário meu amigo, já perto da reforma, e que deixou as suas empresas aos filhos, dizia-me que nem se atrevia a sugerir um profissional sénior aos herdeiros, mesmo sabendo que tinha talento e sabedoria para os lugares em falta - “o meu filho e os seus colegas não querem ouvir falar de pessoas com mais de 40 anos - acham que lhes falta ritmo, vontade, rapidez, e acima de tudo não querem pagar o valor da experiência. Para eles, experiência vale zero, pode até ser empecilho”. Falava sem ponta de indignação - conformado, como se fosse assim mesmo, sem retorno, óbvio.
Quando penso em todas as variáveis que um percurso profissional encerra nos dias que correm, acabo invariavelmente deprimido: não consigo compreender um mundo onde o saber adquirido é desprezado, a energia jovem é explorada sem dó nem piedade, “ser famoso” pode ser uma ambição de vida, e o trabalho é encarado como um numero de processo. Não consigo perceber que um mundo feito de pessoas - sim, ainda são pessoas a mandar em pessoas, a decidir, a pensar, a governar - possa ser tão cruel para com… pessoas. Uns contra os outros? Uns contra os outros.
No mesmo mundo que um dia percebeu que a escravatura não fazia sentido, que mais tarde reconheceu o absurdo do racismo, que por fim caiu em si e conseguiu ver homens e mulheres em pé de igualdade, e direitos das crianças reconhecidos, não concebo que se tenha descido tão baixo nas relações laborais, no respeito pelo trabalho e pelo trabalhador, e nas lógicas empresariais que levam à contratação e ao despedimento. Ou mesmo à ideia de que o esforço e o estudo podem ser substituídos pela fama instantânea num concurso onde se comem minhocas ou se imitam cantores. Estarei a envelhecer ou apenas excessivamente lucido? Não sei. Mas sei que pensar nesta loucura em que se tornou o trabalho me deixa pouco optimista quanto ao futuro dos filhos de quem o tornou tão estupidamente injusto e ingrato.
O mundo mudou, já todos sabemos. Mas não era preciso ter mudado tanto. Ou afinal tão pouco, se recuarmos ao passado mais passado…