Vê lá bem…
(Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman. A deste mês já está nas bancas à espera de quem a leve...)
Uso óculos desde o dia em que deixei de ver com clareza o número do autocarro que me levava do Campo Grande ao Liceu Camões. Era o 36. Tinha 14 ou 15 anos, e foram-me diagnosticados astigmatismo e miopia, em doses baixas e aceitáveis. Durante os 35 anos seguintes, com evoluções discretas ou quase nulas, fui mudando de óculos sem “engordar” demasiado os números, com uma “tensão ocular” elogiada pelos médicos - e com algum gosto, confesso, pela escolha de armações, estilos, modas. Nunca me incomodou o adereço, para mais necessário.
Jamais me passou pela cabeça saber se era possível operar esta ligeira deficiência - e ainda que fosse, era coisa que não me passaria pela cabeça. Costumo dizer que os óculos só me chateiam quando chove, porque lhes falta limpa para-brisas…
Até que chegaram os 50. Sem aviso prévio, mas de forma assertiva - como quem diz “amigo, começa a cuidar-te, viraste a metade do século…” -, recebi o primeiro recado de forma “visível”: deixei de conseguir ler o jornal com os óculos de sempre (por acaso reajustados um ano antes). Quem diz o jornal diz as ementas dos restaurantes, as indicações sobre a forma de cozinhar congelados ou mesmo as mensagens no telemóvel. A primeira reacção é clássica, diz quem sabe: negar. O problema seria “deles” (jornais, donos de restaurantes, etc…), que cada vez escreviam com letras mais pequenas, a poupar nas embalagens e no papel, e os espaços públicos sempre à meia-luz.
As semanas foram passando e os culpados, “eles”, eram cada vez mais: sites de internet, smartphones, livros, revistas, crescia diariamente a lista de pessoas que, numa atitude claramente contra mim, e só contra mim, impediam que lesse o que escreviam usando corpos de letra claramente invisíveis…
Pelo sim pelo não, em trabalhos de rádio ou televisão, aumentava os textos em papel para um corpo que me defendesse em caso de menor visibilidade: primeiro 16, depois 17, por fim 18. Aí percebi que, por certo momentaneamente, estava a ver menos bem. Nada que uns óculos giros, comprados na farmácia, não resolvessem. Ampliar 2,5 vezes o que lia foi solução para mais uns meses de negação. Era a segunda fase da reacção aos factos: aceitar o problema, mas achar que era pontual. Fingir que era pontual…
Até que veio o lento reconhecimento do falhanço: passar o dia com vários pares de óculos, a trocar tudo e todos, estar com amigos e amigas da minha idade e perceber que não estava só e ninguém via “um boi”, sentir-me diminuído face ao tamanho das letras que em geral se usam. Ocorreu-me algo de que sempre ouvi os meus pais falar: lentes progressivas. Nem sabia bem o que eram. Mas aceitei o veredicto (chamemos-lhe, com rigor, diagnóstico…): tinha de passar a usar óculos com esse tipo de lentes, que fossem ampliando a vida de cima para baixo, permitindo-me ver e ler tudo sem ter de andar sempre a trocar de óculos. Claro que comecei por desdenhar a coisa (quem desdenha quer comprar, diz o povo…) de uma forma lógica e ao mesmo tempo irónica: toda a vida aprendi que a progressão se faz de baixo para cima! Aqui é ao contrário, de cima para baixo. Quanto mais olhamos para baixo, mais “progressivo” é o nosso olhar.
Depois deixei de brincar e entreguei-me a quem sabe da matéria. Resultado: 500 euros mais tarde, voltei a ver. A segunda metade do século começou por custar-me 250 euros por cada olho. Podia ser pior.
Mas aprendi uma lição que fica para o resto da vida: para quem sempre viu, deixar de ver também é deixar de estar. E tudo o que não queremos, passada esta fasquia dos 50, é estar fora. Fora de mão. Fora de sitio. Ou apenas fora. A fase da confusão inicial foi ultrapassada com rapidez, e depressa voltei a sentir-me dentro. E a dar valor à expressão ver com olhos de ver. Por momentos, regressei aos 14 ou 15 anos, e estava de novo na paragem do autocarro. Outra vez sem dúvidas sobre o caminho a seguir. É o que conta.